Galochas

De bermuda verde que a mãe lhe dera no dia anterior, camiseta alaranjada, boné, óculos e a pose de pré-adolescente que completava a excentricidade da figura, o menino passou carregando uma quantidade suficiente de moedas para comprar pão e as galochas pretas que teimosamente utilizava, em contradição ao irmão que havia lhe dito para tirá-las – usualmente, tentava com o máximo afinco encaixar-se aos padrões estéticos... Mas no domingo, naquele horário, com ninguém na rua e a simples missão de ir à padaria, permitia-se às excentricidades.

Já não chovia mais há cerca de meia hora, mas uma poça de água enorme se acumulava entre a calçada e a faixa de pedestres: tão escura que era impossível ver o chão e tão larga que só um bom salto poderia fazê-lo escapar de pisar nela. Entre saltar e provar (mentalmente, apenas) a eficiência das galochas ao irmão (que permanecia em casa sem a mínima ideia do que acontecia) o garoto pisou confiantemente na poça e preparou-se para seguir seu caminho. Assustou-se, porém, quando seus pés agarraram no chão. Não conseguia dar um passo. Analisando diligentemente a cena, olhou ao redor e não viu ninguém, exceto um casal de meia-idade que atravessava a linha do trem atrás de si. Envergonhado demais para pedir ajuda, o menino tentou livrar-se sozinho daquela estranha situação.

Vendo que não conseguia, tentou gritar antes que o casal passasse. Antes, porém, que sua voz pudesse ser ouvida, foi sugado para dentro da poça - com boné e tudo. Soltou as moedas na queda e se aturdiu ao notar caíra em um local tão seco quanto o deserto e tão escuro quanto a madrugada. O barulho da queda soou oco, vazio, baixo. Abrindo os olhos, contemplou o céu de nuvens espessas e o ar acinzentado que faziam perfeito coro com o chão gélido, de concreto sujo. Podia ser um esgoto - até pensou que era – mas não havia encanações correndo por ali, nem água nenhuma.

Havia, porém, uma mulher. Uma que há muito, na infância, vira em sua rua e tinha medo – ela andava com muitos cachorros, vivia entre eles e sua avó dizia que, se fizesse bagunça, aquela andarilha viria pegá-lo de madrugada. Disseram que ela estava morta. O menino pensou ter morrido também. Pior: pensou que morrera e estava fadado ao inferno. Chorou.

Mais adiante, um casal de velhinhos o viu caído no caminho, sem coragem ou forças para levantar-se. Disseram-lhe que haviam caído ali recentemente e ainda não haviam descoberto o caminho de volta, mas estavam descansados e haviam encontrado um lugar de repouso, ali aos arredores. Insistindo que havia chegado ao inferno e estava morto, o garoto percorreu o lugar entre lágrimas e a busca de coragem para tentar uma oração qualquer e encontrou um grupo de beberrões sentados à mesa discutindo suas apostas. Notou, então, que havia ao seu redor uma cidade – cinza e esquisita, mas talvez, não morta.

O casal de idosos, preocupado, seguiu-o para tentar lhe explicar o que acontecera. É que, ao pisar naquele poça, as pessoas eram enviadas ao mundo esquecido – e sairiam de lá se alguém, lembrando-se deles, passasse pela poça chamando seu nome e procurando-os. Contaram que uma moça havia ido parar ali e minutos depois uma jovem, sua amiga, havia gritado seu nome na rua e então, como que por mágica, ela retornara a superfície.

O jovem então pensou em seu irmão, o implicante das galochas, nos pais e nas tias. Se não chegasse em casa em vinte minutos, viriam procurá-lo e tomara que viessem gritando. Mesmo com medo, aquietou-se na segurança da família e pôs-se a explorar, sem andar muito, o estranho mundo ao redor. Como ninguém nunca lhe contara sobre isso? Como não havia uma lenda, um aviso, uma história de alerta? Um plano de resgate? Quantos desaparecidos estariam ali?

Conversando com um homem que permanecia à margem do que parecia ser o centro da cidade, indagou-lhe quanto tempo estava ali – com o rosto amigável, soava como alguém de quem as pessoas se lembrariam, diferente dos bêbados ou da moça dos cães; devia ser o azar de ninguém gritar seu nome. Arrependeu-se no momento em que ouviu a resposta, já que o senhor estava ali há mais de vinte anos e chegara da idade do garoto. O exemplo o fez estremecer. Disse que se lembrava apenas de seu primeiro nome e que, com o passar do tempo, fora se esquecendo de quem era e de onde viera. Confessou ainda que haviam casos mais severos que o seu – os habitantes não sabiam nada sobre si. E se não sabiam seus nomes, mesmo que fossem chamados, não conseguiriam sair. Não haveria, então, esperança.

Disse também que há certo tempo havia caído ali um mensageiro vindo da superfície que lhes disse que havia um homem que era Deus ao mesmo tempo em que era humano e que era bem capaz de resgatar a todos – bastava chamar-lhe em voz alta, crendo que o resgate viria, e então mesmo sem que alguém se importasse em procurá-los, sairiam dali. Alguns tentaram e foram bem sucedidos, outros se negaram o risco ou estavam acostumados demais para voltar aos riscos da esperança.

O menino, de certa fé, perguntou ao homem o nome que deveria chamar – mas ele não lembrava. Enquanto pensava sobre a história e tentava desvendar o enigma, ouviu a voz do irmão soar como a mais agradável das melodias, apesar do grito estridente e preocupado: “Henrique!” De repente, seu nome fez mais sentido que nunca. Antes que pudesse pensar, estava sentado perto da poça, sentindo-se tonto e com olhos esbugalhados de quem não acredita que viveu a verdade ao invés de sonho.

Olhando para os pés descalços, lembrou-se que o homem segurara suas galochas e, não podendo ser levado junto com ele, ficou apenas com elas. Enquanto o irmão, preocupado, lhe fazia perguntas sem fim, o menino esforçava-se para lembrar do que quer que fosse. Queria gritar ao menos um nome – mas não sabia nenhum. Então, chorou de gratidão e impotência abraçado ao seu protetor, que assumiu que este estaria um estado de choque ou algo assim depois de um estranho assalto que levou suas feias, porém queridas, botas de infância.

Camila Amizadai
Enviado por Camila Amizadai em 07/02/2022
Reeditado em 07/02/2022
Código do texto: T7447141
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