Um dia na vida

É manhã, eu me levanto da cama e vou me arrumando vagarosamente para viver. Vesti uma blusa que parecia uma blusa social, uma calça preta e calcei um mocassin. Estava pronta, mas não me sentia pronta. Nunca me senti. Talvez isso nunca fosse mudar. O dia é o mesmo de sempre e a vida caminha igual. Não sei se isso é bom ou ruim. Vou até a cozinha, pego meus remédios no armário e tomo um por um, seis no total, sentindo o gosto amargo na garganta de substancias que não conseguia distinguir a diferença entre uma e outra.

–É tudo o mesmo– digo para mim mesma na esperança de que isso vá me acalmar e tirar o gosto ruim da minha boca, mas não me acalma e o gosto continua lá. Como se me perseguisse. Eu sou a única capaz de descrevê-lo, mesmo sem tocá-lo. Seria isso possível? Uma coisa ser real, mesmo sem que consigamos tocá-la? No prelúdio da tristeza, que insistia em aparecer, de novo, eu fiquei por um tempo, enquanto estava sentada no chão da cozinha. Quando o relógio despertou, é que percebi que horas eram. Eu precisava ir para o trabalho. Me levantei, tirando a poeira que tinha se acumulado na minha roupa e fui. Quando cheguei lá, não havia ninguém, a galeria estava fechada.

Eu trabalhava em uma galeria, onde eu fazia descrições para as pinturas e interpretava elas para que os que trabalhavam do lado de fora, com as pessoas, pudessem se preparar. Era interessante trabalhar com as pinturas, não trabalhava com as pessoas em si, mas podia sentir as pessoas, ou sua mentira, cada pedaço espalhados em alguns desenhos e tinta. A minha favorita na qual eu já havia trabalhado, foi a que eu menos me dediquei na produção do texto. Era uma pintura de uma flor, talvez uma tulipa, não sabia a diferença, a única coisa que sei é que o jeito que o autor pintou as flores, cada cor, cada falta, tinha me encantado e me assustado de um jeito que eu havia desistido de pensar nela, mas aqui estava eu pensando novamente...

Fui para a minha sala, gostava do silencio que ela exalava, além disso, ela tinha cheiro somente de livros e pinturas. Nada de pessoas. Era somente eu naquele lugar, talvez mais uma de vez em quando, mas somente isso. Quando as pessoas começaram a chegar, eu recebi meu trabalho do dia. Era uma pintura abstrata de algo que parecia ser uma pessoa, ela sorria, mas estava com medo, tinha o rosto quadrado e um cabelo grisalho, parecia ser um homem. O que mais predominava eram as cores escuras, o que passava um olhar de tristeza, talvez o sorriso pudesse ser falso, talvez ele pudesse estar chorando por dentro.

Eu estava prestes a entrar em colapso com essa pintura, fazia completo sentido, mas sentido nenhum para mim e eu me sentia profundamente triste agora. Talvez fosse somente mais um dia, talvez eu fosse o homem da pintura, talvez eu não fosse ninguém.

Debora B Ribeiro
Enviado por Debora B Ribeiro em 11/02/2022
Código do texto: T7450064
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