A Carruagem

Dia ensolarado.

Manhã perfeita para ir à cidade resolver algumas questões de negócio.

- cocheiro!

- sim, senhor, patrão!

- prepara a carruagem! vamos à cidade.

Apressou-se o cocheiro - um velho que já trabalhava há muito tempo para a família de seu empregador - cabelos brancos, semblante gasto pela idade, porém um espírito jovem e bastante perspicaz.

O cocheiro prepara o transporte - uma carruagem antiga, mas muito bem cuidada e uma mula, comprada há não muito tempo pelo patrão. Tudo pronto. O fazendeiro entra e, sentindo-se confortável no acolchoado estofado da sua carruagem, ordena que sigam viagem. E rumam ao seu destino.

O patrão era um rapaz com não muita experiência de vida, mas bem instruído e, até certo ponto, uma pessoa sensata. Perdera os pais ainda muito jovem e herdara a propriedade ( e, com ela, os serviços daquele velho Senhor) e alguns investimentos na cidade. Teve que aprender cedo a cuidar dos negócios e vinha se mostrando até promissor na tarefa que abraçara.

O caminho era margeado por um profundo e largo abismo rochoso. E tinha-se que contorná-lo por cerca de uns sete quilômetros para, só então, seguir pela estrada que levava à cidade. Daí, percorrer mais uns oito quilômetros e chegar ao perímetro urbano. Ora, o abismo tinha cerca de uns cento e cinquenta metros de largura e algo em torno de duzentos metros de profundidade. A entrada da cidade ficava a mais ou menos um quilômetro da Fazenda, acompanhando o curso do precipício.

- quem dera, pudéssemos atravessar este enorme barranco! -  pensava o cocheiro -  quanto tempo isso nos pouparia? Tá, deixa para lá... o jeito é descer à realidade e seguir em frente. Quem sabe, um dia, não se construam uma ponte para facilitar a nossa vida! Quem sabe um dia... e continuou a sua viagem. Os Viajantes não iam muito rápido, já que estamos falando de veículo movido à tração animal. E, ao chegarem à distância de um quilômetro, bem de frente à entrada do caminho que os levaria a cidade,  separados pelo abismo, o cocheiro olhou para aquela direção e lembrou-se do devaneio que tivera há  pouco tempo atrás, balançou a cabeça, de leve, para os lados e prosseguiu.

De repente, Brada o patrão:

- pára a carruagem, agora! Preciso tirar água do joelho.

Enquanto o jovem senhor pôs-se a fazer sua necessidade pouco à frente da Carruagem e próximo à mula, o cocheiro, o velho cocheiro aproximou-se daquele gigantesco desfiladeiro e ficou em transe, levando-o a sua imaginação sabe-se-lá aonde. E permanecera, por algum tempo, a contemplar em si o simétrico equilíbrio da beleza e do horror que, dançando em volta de tão singela existência, lhe tangiam àquele misterioso fenômeno da natureza.

Enquanto isso, junto à charrete, uma voz Estranha, um tanto tímida, sou aos ouvidos do patrão. E, virando-se, não pôde acreditar no que vira:

- és tu mesmo! aproxima-te!

- mas desde quando mulas falam? estou eu, acaso, enlouquecendo? Ah! deve ser a viagem que me causou este efeito  tão incomum... Mas mal começamos a percorrer nossa jornada!

- Não! você não está ficando louco. aproxima-te! Eu não mordo. - deu a mula um risinho sem vergonha.

E aproximou-se o patrão ainda meio desconfiado.

- o que Queres? Deus! estou ficando louco!

- sabe, ainda não havia tido a oportunidade de falar contigo, mas cá estamos nós e não posso deixar esta oportunidade passar. preciso que me ouças.

O rapaz voltou toda a sua atenção ao animal falante:

- diga, Então! o que tanto desejas falar?

A mula alegrou-se.

- olha para aquele velho! Ele já não te serve mais. A idade avançada e a percepção de realidade já bastante ultrapassada o tornara algo obsoleto.

- mas... mas ele sempre serviu à minha família. aliás, inclusive muito antes de eu existir.

E o animal insistia:

- posso te provar que sou bem melhor que ele só troca-nos os lugares que te mostrarei!

- não! isso é loucura! -  diz o patrão ainda incrédulo na fala do animal.

E continuava a mula:

- E se eu te falar que podemos atravessar este Abismo flutuando e chegar ao outro lado ilesos? Sabes quanto tempo de viagem pouparíamos?

- absurdo! impossível! - Colhendo uma pedra bem ao lado de seu sapato, pedra esta que cabia perfeitamente na palma de sua mão, dali mesmo, ele a lançou no penhasco, e...

- Tá vendo? como podes dizer que flutuaríamos?A pedra, que pesa bem menos que nós, precipitou-se Abismo abaixo. agora, Imagine!...

Mas a mula se mostrava bastante fervorosa em suas investidas persuasivas ao Jovem fazendeiro.

- como você mesmo viu, a pedra mergulhou ao fundo do cânion. Mas... como você tem tanta certeza que cairemos também? Acaso já tentaste?

E o pobre rapaz, um tanto confuso, envolvido em tão descabida situação, ainda tentava resistir:

- o cocheiro! cocheiro sabe que tenho razão! Ele, como já disse, é bem mais experiente do que eu e do que uma mula como tu. Ele sempre percorreu estas bandas e conhecem o abismo com ninguém.

E continuava o animal:

- balela! Ele só não atravessa Por que não lhe convém fazê-lo. O seu objetivo é atrasar sempre as tuas viagens. Provavelmente, esse velho imprestável deve fazer parte de alguma conspiração Secreta de cocheiros mal-intencionadas com o único objetivo de atrasar a vida de seus senhores. Porque, então, o cocheiro estaria há tanto tempo sob as ordens da tua família, senão, para tramar contra ti e teus interesses? Na última vez que fomos à cidade, fiquei só observando a reação do cocheiro, ou melhor, a falta de reação dele, quando aquele senhor bigodudo e gorducho, lá na feira, ignorou o teu ponto de vista de forma tão desdenhosa sobre  aquele assunto um tanto peculiar que os senhores desenrolavam. A tua visão acerca do mundo é o que importa e, ou estão do teu lado, ou contra ti. não existe meia medida! E oque ele fez? Nada! Eu teria agredido aquele homem em tua honra.

  Aquelas palavras soaram ao Jovem patrão como uma mão suave a afagar seu Modesto ego... Mentira! Aquilo sou, praticamente, como uma masturbação por uma mão confidente ao seu ego, agora em estado de ereção e já não tão Modesto assim.

E falava mais ainda:

- te prometo resolver qualquer problema que vieres a enfrentar, como este, por exemplo, sempre de forma simples e sem muita reflexão, pois pensar demais só atrapalha.

O patrão, já sem argumentos, sucumbira ao discurso da mula, que até então, só servia de tração à sua carruagem. E, com um grito encolerado, e já totalmente tragado por aquela nova perspectiva, que agora tornara tudo tão claro, como nunca antes tinha percebido, tirou seu fiel empregado do transe de sua contemplação.

- vem cá miserável! Não fales uma única palavra, para que não me contamines mais com tuas ideias! E troca de lugar com a mula imediatamente!

O pobre cocheiro, assustado e sem compreender ao certo o que se passava, tentou retrucar, mas o patrão, agora Implacável, o fez silenciar-se de imediato. E, mesmo sem concordar ou ao menos entender, prontificou-se a obedecer o seu empregador.

A Mula, satisfeita, encarando o velho, deu um sorrisinho irônico de canto de boca.

O cocheiro veio à carruagem, pôs-se ao lugar do animal, a arrastar a charrete e cedeu, com muito pesar em seus olhos, suas rédeas à astuta mula. Pediu então a mula, agora também senhora daquele infeliz que ocupava seu tão suplicioso lugar, ao patrão, de forma gentil que entrasse à carruagem e se acomodasse, que já Seguiriam viagem. O fazendeiro, aparentando satisfação com a troca entre seu empregado e o seu animal, assinalara, tão logo, que seguissem curso.

A mula, açoitando o velho homem, extasiada com aquela posição de poder, o fazia com extremo deleite. E, engatinhando o velho serviçal vagarosamente, a carruagem pôs-se a mover-se.

A mula, agora guiando-os, falou ao patrão:      - Relaxa! agora te mostrarei o tempo que este homem mal-intencionado te fez perder, sempre que fazia o longo Contorno pelos arredores do precipício, quando tudo o que precisava fazer era ir de encontro ao mesmo e flutuar até o outro lado.

Não se sabe ao certo o que se passava pela cabeça do cocheiro, ou melhor, ex cocheiro. tudo o que se podia ver era o seu enorme suplício e profunda tristeza ante àquela situação impensável. Já não tinha forças para resistir.

Estranhamente, o patrão, ao invés de ser tomado pela curiosidade, ansiedade, medo ou sei lá mais oquê, com aquela tão arriscada empreitada confiada à mula, tão mais confortável e seguro se sentiu ao abrigo das palavras do novo cocheiro. Mais confortável até do que no seu nobre estofado, ao qual se entregara àquela altura. E pôs-se a tirar uma soneca - aquilo tudo o deixara um tanto cansado. A mula, então, pondo seu plano em ação, danou-se a açoitar o coitado do homem, mas não mais direcionando-se à estrada. Agora, virava a face do veículo à boca do Abismo - imponente e mortífero, aos olhos de muitos, mas que à percepção da mula, parece insignificante ante o imenso transbordar de tanta autoconfiança.

E seguiu a carruagem, tão vagarosamente quanto lhe permitia o vão Sacrifício do derrotado trabalhador, rumo ao precipício.

       ......................................................

Poucos dias depois, passava por aqueles lados outra carruagem. O cocheiro suspeitou ao notar a quantidade de Abutres que circundavam ao coração do enorme barranco. parou ali mesmo e a curiosidade o guiou, quase que como guiava o vento a uma folha seca, à beira do abismo. Lá no fundo, pedaços do que outrora fora uma carruagem e tantas aves negras e famintas quanto se podia contar. Fazendo uso de um monóculo que casualmente trazia em seu bolso direito, conseguiu atentar mais detalhadamente à carcaça de uma mula, e, embora houvesse muitas aves regozijando-se com aquela refeição, pôde o tal condutor de Carruagem identificar também os restos mortais de dois homens.

Claudiomar
Enviado por Claudiomar em 14/02/2022
Reeditado em 11/05/2022
Código do texto: T7452332
Classificação de conteúdo: seguro