THE QUESTION

Nunca antes tivera um ponto de interrogação em suas irrecusáveis obviedades. A presença daquela locução adverbial invadira indiscretamente todo o cosmo das verdades sólidas e concretas. Logo ele que desde cedo fora jogado em um mundo dado como certo e imutável, um mundo que já existia antes dele e que continuaria perene depois dele. Logo ele que jamais lhe fora dado escolher o que fazer, o que pensar e o que sentir. Logo ele que sempre dormitara na calmaria das certezas certas e no assossegado estável das constâncias. Logo ele que seguia as normas postas e os caminhos já mapeados. Logo ele para quem o mundo era como era e que só lhe cabia moldar-se inerte e mansamente com a indolência comum dos preguiçosos. Logo ele...

Feito quem se espanta por um susto se viu tomado de um arrepio que lhe percorreu a pele inteira como se uma corrente elétrica lhe atravessasse o corpo e lhe estremecesse os músculos e agitasse os nervos, dando-lhe tremulações, palpitações e calafrios. E uma vibração até então em tempo algum sentida lhe sacudiu de um irremediável medo que não conseguia recusar. Todo seu mundo parecia desmoronar. Tudo que era tão maciço, robusto e rijo se desarranja e se desmantela como se fosse oco e preenchido apenas de ar.

Milhares de anos, de firmezas e de deuses são agora insuficientes para lhe sustentar. Como o desvairado de Nietzsche, passou a gritar para dentro questionando as correntes que o prendiam ao solo e os horizontes que limitavam as paisagens. Um enorme buraco abriu-se aos seus pés e todo seu mundo tão concreto, preciso e definido pareceu se esvair assim quase como quê de repente.

Inicialmente sentiu-se vertiginoso e vagando solto em uma profusão de ideias e pensamentos que lhe rodopiavam como um carrossel desgovernado. Passados os instantes iniciais foi se acalmando e vislumbrando veredas mentais nunca dantes imaginadas.

Voltado para dentro de si encontrou uma sensação de liberdade ancestral e nostálgica, e se viu experimentando pela primeira vez desde que se conhece como gente um deleite e um gozo semelhantes aos que sentem os libertados. Se previamente se agarrara ao peso das certezas e dos acatamentos, agora vivenciava leveza das dúvidas desacorrentadas das respostas incontestáveis. E vibrou de arrematado júbilo ao descortinar em si mesmo toda uma potência antes sonegada: o poder de questionar, interpelar e demandar.

Por quê? Por que as coisas são como são? Por que penso assim? Por que não de outra maneira? Por que faço isso ou não faço aquilo? Por quê? Por quê? Por quê?... Quando então se deu conta já havia se levantado, escovado os dentes e tomado banho. Não havia sentido nenhum esforço ou enfado. Sequer sabia os minutos já percorridos, pois o tempo é para ser vivido e não para ser contado. Que importância tem um segundo a mais ou um segundo a menos? Parecia que séculos tinham saído de cima dos seus ombros. Tudo se afigurava hoje tão diferente.

Ligou para o trabalho avisando que ia faltar por não estar se sentindo bem, deve ter sido o jantar de ontem à noite – alegou. Vestiu uma camiseta básica de cor branca com uma calça jeans gasta, calçou um par de tênis e desceu pelas escadas, evitando o elevador e seus primeiros bons-dias insossos. Na rua, ao invés de seguir em frente como de costume, desta vez dobrou à esquerda e mergulhou na vida em meio a asfaltos, prédios e calçadas, com a incerteza se iria voltar.

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 17/02/2022
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