DOA-SE: ROUPAS DE RECÉM-NASCIDO NUNCA USADAS

Le miroir

Numa olhada de relance malvada o espelho de madeira maciça me mostra uma lembrança triste, a qual ficou tatuada em mim, à revelia do meu bem querer. O meu corpo, que também é espiritual, me trouxe até esse momento e me proporciona a olhadela, a memória e o evento. Vi a marquinha, a representação do não começo, do meu trauma mais agudo e da minha falha.

L’attente

A atividade humana que mais requer tempo é o sono, passamos um terço da vida dormindo. Dormir é alcançar uma condição específica simultânea da mente e do corpo, um estado ordinário da consciência, em que experimentamos uma suspensão temporária da atividade perceptivo-sensorial e motora voluntária, que nos permite ignorar até uma furadeira ligada por um vizinho inconsequente às duas da manhã se tivermos tido um dia pesado.

Essa atividade sempre foi altamente apreciada por mim, já que nunca havia experimentado problemas para dormir, o que é algo esperado para uma mulher no final da casa dos vinte anos de idade. Com o passar do tempo fui me apegando cada vez mais as minhas horas de semiconsciência diárias e aos filmes insanos que meus neurônios me apresentavam durante esses momentos. Meu sono andava melhor, mais profundo e intenso. Assim, eu tinha aprendido a dar valor a cada segundo dos minutos dessas horas.

Minha avó fez questão de me avisar, o que mamãe reforçou, o fato de que depois do nascimento do bebê eu não iria dormir direito, então precisava aproveitar. Disseram que viria o choro constante, as mamadas de três em três horas e preocupações inerentes aos superpoderes de mãe.

Naquela época, eu estava na sexta semana. O coração dele já batia como uma escola de samba. O seu fígado, intestino, pulmões e rins já estavam se desenvolvendo. Os seus olhos, sua mandíbula, suas bochechas e seu queixo estavam começando a se formar. Li tudo no aplicativo, minha mãe e minha avó ficaram bobas com tanta tecnologia. Eu sempre ligava para uma delas quando tinha enjoos de manhã e elas sempre tinham respostas para tudo, queriam participar. Eu estava rodeada de apoio.

Meu homem aquentava tudo, inclusive meu cansaço maluco, as paradas para o xixi constantes e minha sonolência. Nunca tinha visto aquele olhar, achei que já sabia tudo sobre ele, mas existia algo novo estampado ali, que brilhava. Estávamos radiantes e ao mesmo tempo aterrorizados.

Nunca vou esquecer a reação dele quando contei. O exato memento em que ele abriu o “presente” e viu o teste ao lado do sapatinho. Aquele rosto surpreso, assustado, as lágrimas que vieram depois.

Não nos aguentamos e compartilhamos a notícia com os parentes e amigos mais próximos, um erro justificável pela euforia. Ganhamos comemorações, ajuntamentos de seres humanos alimentando-se de comidas que sujavam nossos beiços risonhos e sonhadores.

Nos deram lembrancinhas, artefatos normalmente encontrados na seção de bebês dos supermercados, mamadeiras, pratinhos de plástico, babadores.... Eram símbolos do futuro, lembretes de que tudo tinha virado do avesso, objetos que mostravam o carinho depositado por essa gente nas nossas vidas em metamorfose.

Nós mesmos já começamos a planejar, pensar em nomes e compramos algumas coisinhas. Um mundo de expectativas crescia dentro das nossas mentes e no extrato do cartão de crédito. Era empolgante e um tanto assustador, mas ignorávamos esse sentimento estranho que deixa os pelos do corpo na vertical. Creio que por misericórdia divina fomos bobos demais, inteligentes para deixar essa estranheza de lado. Era inacreditável, algo fabuloso já tinha acontecido em mim: o surgimento de uma mãe.

Em meio a tanta alegria cometi o grande erro de ir deixando minhas consultas médicas para depois, uma outra hora. Eu estava feliz, tudo estava muito certo e eu certamente iria fazer isso logo.

Eu havia mudado. Tinha começado a ver tudo diferente, as coisas com as quais sempre compartilhei a mais genuína familiaridade, das quais nem sequer ousavam trazer vida as minhas inclinações. Já sentia o download dos

superpoderes maternos no meu corpo acontecerem constantemente, até que um dia eles falharam.

Le jour

Comecei a ter umas dores na barriga. Elas apareciam mais pela tarde, estava tão ocupada, bem no meio do expediente, que não percebi tanto, preferi ignorar e não preocupar ninguém, principalmente meu homem. Só era estranho...

Uma noite qualquer durante uma das agora recorrentes conversas sobre nosso bebê ele tocou minha barriga, bem no cantinho correspondente ao meu útero e doeu pra burro. Algo inédito. Era uma dor diferente, e olha que eu nunca fui fraca para essas coisas. Era estranho demais...

Até que tive sangramentos vaginais. Era um sangue diferente dos que mulheres são acostumadas, um fluxo hiperbólico. Um sinal evidente de que algo caminhava fora dos padrões. Era extremamente estranho.

Eu não queria preocupar ninguém, inclusive não tinha contado para o pessoal da escola sobre a gravidez, porque eles provavelmente iriam me demitir, como fizeram com aquela professora de artes e de qualquer maneira, eu finalmente tinha resolvido ir ao médico naquela noite. Mas, foi justo naquele dia durante uma aula, enquanto eu mostrava as diferentes fases da poesia romântica brasileira que desmaiei.

De primeira só não consegui ouvir a pergunta do Flavinho, que não costumava abrir muito a boca. Depois, as palavras não conseguiam sair de mim, formular uma frase era um ato descomunal, parecia que nunca tinha feito aquilo. Foi nesse momento que as carteiras se desalinharam e o giz se contorceu na minha mão. Tudo a minha frente foi tomado por um filtro cinza e preto tão rápido que foi difícil entender, subitamente a força das minhas pernas se esvaiu e senti o quentinho do sangue vazando. Ainda consigo sentir o impacto dos nossos corpos com chão gelado, ouvir as vozes desaceleradas ao longe e viver a sensação do nada.

Deve ser algo parecido com morrer, se é que se sabe algo sobre a intransitividade da morte, claramente não era. Eu sentia o pavor das existências por um triz, do desconhecimento de um ideal latente, do fim da vida cheirando meu cangote, das dúvidas desconhecidas vindo à tona, da falta de respostas, da espera e da minha incapacidade.

Depois do desmaio, alguns alunos chamaram o professor de física, que mostrava algumas fórmulas que vão ser inúteis para a vida profissional de noventa por cento dos alunos presos naquela classe. Naquele momento todo o andar conhecia minha condição e a notícia foi se espalhando como um vírus. Logo, a coordenadora foi avisada e encarregada de chamar um socorro mais eficiente.

A chegada da ajuda foi um show à parte, já que no Brasil ambulâncias não costumam chegar quando se tem uma emergência digna delas. A escola ficava perto de um corpo de bombeiros, e foi dali que vieram me socorrer. O grande rebuliço foi crescendo e dando aos alunos da escola uma história maneira para contar dali para frente.

Todas as aulas do prédio foram interrompidas de alguma maneira quando uma van vermelha tocando uma sirene estridente entrou no pátio da escola. Os bombeiros devidamente uniformizados fizeram os primeiros socorros e me levaram para o hospital em algum espaço improvisado dentro do mini caminhão no que mais parecia ser uma cena num filme de realismo fantástico policial. Gostaria de ter protagonizado de forma lúcida esse momento tão único em minhas retinas nem tanto fatigadas, ou não, melhor não.

No hospital fui minuciosamente examinada o que me levou para a mesa de cirurgia. Eu também estava sangrando por dentro, o que não é tão fácil de descobrir. O fato é que uma das minhas trompas tinha se rompido. Os milhares de exames que eu fiz dentro daquelas horas mostraram que eu tinha uma gravidez ectópica, o que significa que meu bebê estava crescendo fora do útero. Por esse motivo eu tive dores, sangrei e desmaiei.

Minha gravidez não tinha ido para frente.

Eu perdi meu bebê.

Por alguma razão eu acabara de ter um aborto espontâneo.

Falhei em gerar alguém.

Melei minha oportunidade de ser mãe.

Tirando a constatação da morte, a cirurgia correu bem. Retiraram órgãos meus os quais eu nunca vi e não vou ter mais a oportunidade de ver. Tiraram alguém de mim. Botaram para fora uma parte minha. Salvaram minha vida e deixaram uma cicatriz bem discreta, que até dá para esconder com a calcinha. Nesse dia minha história foi marcada para sempre.

“A vida é sobre uns quatro ou cinco dias que mudam tudo” disse Beverly, interpretada por Drew Barrymore, com a voz de Miriam Fisher na versão brasileira do filme “Os garotos da minha vida”, que é uma escolha péssima de adaptar o título “Riding in cars with boys”. Eu acredito demasiadamente nessa frase.

Aquele dia devastou meu corpo. Cortaram minha pele, remexeram nas minhas entranhas. Meu sangue pintou alguns órgãos de um jeito não natural. Ingeri uma quantidade de drogas que vociferaram ordens aos meus neurônios e músculos. Algumas funções vitais foram cumpridas com a ajuda de aparelhos. Me costuraram, como se eu me transformasse numa colcha de retalhos, de restos de panos velhos, mal-usados e sem valor, ou não.

Aquele dia quebrou meu psicológico, eu acho e tenho certeza de que não consigo explicar como ou por quê.

Le déni

Ele ainda pode viver, não me disseram nada sobre a impossibilidade disso. Ninguém me disse que ele tenha morrido, não falaram isso. Os médicos podem encontrar um jeito de reimplantar ele no lugar certo. Eu topo fazer tratamentos experimentais, consigo tomar quantos remédios forem precisos ou sentir a dor que for necessária. Em pleno século vinte e um eles conseguem dar um jeito!

Talvez eu só esteja sonhando, e nem seja verdade, só uma piadoca boba e irreverente dos meus santos neurônios, uma coisa extremamente idiota e de mal gosto. Eu tenho dormido muito bem mesmo, é só mais um sonho longo e bem parecido com a realidade. Eu vou acordar daqui a pouquinho com um beijo do meu homem ao som daquela música agradável do meu despertador, aquela bem animada, que já me dá um gás de viver.

Isolation

Eu não quero conversar, ouvir palavras sábias ou idiotas. Não quero ninguém me dizendo que era da vontade de Deus ou que tudo vai passar. Eu ainda não entendi nada e não quero compreender ou questionar ou pensar. Quero meu cobertor, um chá, o chão.

Eu não quero ter que explicar nada, contar para as pessoas, não quero. Peço que todos saiam daqui para lavar suas próprias louças, comprar comida para os pássaros, ter conversas difíceis com seus cônjuges ou trocar o óleo das motos velhas.

Eu não quero ver ninguém ou ser abraçada. Ter qualquer apoio moral, ombros ou ouvidos abertos para qualquer ladainha que possa ser produzida pelas minhas cordas vocais cansadas do pós-operatório, por qualquer motivo estranho e alteradas pela produção hormonal duplamente alterada.

Colère

Por que justo eu? Eu estudei para cacete, não deixei de ouvir minhas amigas, nunca devi nada para ninguém e nem cheguei a pegar dinheiro emprestado! Eu cuido do meu marido, da minha mãe e das plantas lá de casa. Eu não mereço isso! Não nasci para isso! Já sofri perdas demais na vida e nem de longe tenho espaço para carregar mais uma.

Esses médicos são incompetentes, não ligam para nada, nem para ninguém, só querem ganhar mais, por isso o Brasil está desse jeito! Os políticos não fazem nada para melhorar essa saúde, só roubam e a gente fica assim sem recursos básicos para viver nessa merda.

Aquele idiota que me engravidou, ele sabia que não era para gente transar naquela hora. Foi ele que disse que estava na hora da gente tentar um filho. Obviamente ele não tinha a menor ideia do que essa bomba de hormônios ia fazer comigo, nem pensou na dor e no desconforto que eu ia sentir. Só contamos para todo mundo por causa dele. Ele me fez ficar animada daquele jeito com a gravidez, porque ele ficou feliz e sabia que isso ia me deixar mais serelepe ainda. Foi ideia dele já comprar aquelas coisas...

Por que fui comer tão porcamente? Só caguei meu corpo, também sendo obesa por tanto tempo, o que eu estava esperando? Eu devia ter avisado que estava grávida, o problema foi esconder como se fosse um crime. Por que raios deixei para fazer os exames depois? Não era só ter agendado e ido? É a tireoide cagada! Fiquei animada demais, criei expectativa igual uma menininha idiota. Por que fui correr de manhã? Que falta de noção!

Bonne affaire

Talvez tenha sido melhor, não é? E se meu filho me matasse quando fizesse dezoito anos por dinheiro, nascesse sem cérebro e ficasse sobrevivendo por aparelhos caríssimos, traficasse pessoas para prostituição online, fosse pedófilo ou gostasse de sertanejo universitário?

Ia ser muitíssimo pior vê-lo morrer afogado ao cair na piscina num domingo ensolarado no condomínio de um amiguinho da escola a cinquenta quilômetros de casa. Ou deixar ele morrer engasgado com o leite em uma noite em que eu não tivesse colocado para arrotar por estar caindo de sono. Ou receber uma ligação de um policial cansado dizendo que ele morreu numa batida com o carro que acabamos de dar para ele de presente por passar na faculdade. Ou encontrá-lo morto sufocado pela pressão de nossos corpos ao deixá-lo dormir na nossa cama por uma madrugada só.

Não é uma benção todo o dinheiro economizado das fraldas até o ensino médio? Não ter que lidar com a puberdade esquisita dele? Não trocar fraldas recheadas de cocô mole? Não precisar conhecer os contatinhos? Não ter emergências médicas que iriam cortar nosso coração? Não lidar com birras insistentes? Não pensar sobre conselhos amorosos que seriam difíceis de dar?

Dépression

Já não consigo sentir mais nada. Pensar em coisas gostosas ou paisagens bonitas é triste. Imaginar qualquer coisa agradável dói, é incômodo.

Só consigo me ver assim, desse mesmo jeito de merda, amanhã e depois e além. Não me lembro de como era antes, como eu acordava, trabalhava e vivia. Quero dormir, assim perco o controle dos pensamentos, consigo esquecer o fato de estar viva, de existir num mundo onde ele não existe. Eu choro, não sei bem as razões, bem quando penso na criança, na sua morte ou em qualquer coisa que venha antes ou depois daquele dia. Qualquer ato de consolo e amor me destrói e dá vontade deitar no chão, de chorar mais. Não sei com quem falar, ou o que dizer.

Ver meu homem triste e esquisito piora tudo. Me corrói. Vê-lo chorar assim me destrói, pensar que ele também está sofrendo. Vê-lo aparentemente menos triste do que eu, acaba comigo. Não ter as palavras não é normal entre a gente, isso é terrivelmente estranho. Quando ele precisa sair para o trabalho eu sinto uma culpa, uma dor e uma solidão. Eu não sei o que dizer para ele, isso não é comum. Ver essa barreira entre nós me dá vontade de morrer, de continuar assim chorosa.

Tudo me lembra do bebê, e as lágrimas caem. Tudo me lembra a sua morte e o ranho continua escorrendo pelo meu rosto. E se me percebo sem chorar, também é assustador, culposo. Tenho uma ânsia por ser sedada, por ser recheada de drogas que me façam hibernar como um urso tranquilo sem fome acostumado com o frio. Me sinto como uma criança que ralou o joelho num lugar desconhecido, que chora de soluçar com a dor, pois ela sabe que vai apanhar quando chegar em casa e só de lembrar o quanto o remédio vai arder começa a chorar desesperada.

Acceptation

Sempre vai doer, não tem jeito. Foi uma tatuagem ruim na minha história, não vai poder ser apagada ou esquecida, nem se eu perder a memória. Isso tudo deixou marcas no meu corpo e no meu cérebro. Não vou deletar, nem parindo quinhentos filhos e batizando-os com todos os nomes os quais pensei dar para esse. As marcas estão aí, bem aqui.

Na pilha de roupas nunca usadas, nos ruídos dentro do casamento, na cicatriz no meu ventre, no choro da minha avó, da minha mãe e da minha sogra, no rosto dos meus alunos que me viram desacordada e ensanguentada, no abraço de meu homem.

Eu perdi alguém que não tive o privilégio de conhecer, ou ver. Não pude saber seus gostos, qualidades ou manias. Mas, tenho a certeza de que ela esteve aqui, existiu, nos mostrando o milagre da vida e trazendo uma das maiores alegrias que poderíamos ter. Esse alguém que é plenamente conhecido e existe agora em um outro lugar, o qual eu ainda espero estar.

Com uma força que não vêm de mim sigo, prossigo e consigo viver um dia de cada vez, em meio aos cacos e as delícias de estar viva. Sabendo que esse não é o fim da história, mas só o começo de uma.

Esse trauma está aqui, não fará as malas nunca, vou conviver com ele. Em certos dias ele gritará aos meus ouvidos palavrões ainda não inventados. Me confrontará com a morte. Vai irradiar a cicatriz aos meus olhos. Me ensinará verdades sobre o universo. Trará horas de desespero. E ainda sim, viverei.

Comei comidas que farão massagem no meu estômago, escutarei músicas que me contaram segredos sobre o mundo, enxergarei paisagens que vão desnortear minha respiração, beijarei meus pais com gratidão, darei minhas mãos e ombros aos feridos, principalmente aos lesados como eu e aproveitarei o privilégio de estar viva através da dor, apesar dela.

N.V - 2021

LizaBennet
Enviado por LizaBennet em 19/04/2022
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