DESCALÇADEIRA

DESCALÇADEIRA

Jocenir Barbat Mutti

Nov/07

Com muito orgulho, nasci e estudei até o científico em Uruguaiana. Morávamos na rua General Câmara, minha família e as famílias dos irmãos do meu pai. Era uma casa ao lado da outra com os pátios interligados. Nossa casa era um sobrado, construído com muito orgulho pelo meu pai. Ao lado da residência, na parte da frente, era a “sapataria”, como era chamada a loja, tendo aos fundos uma pequena fábrica de botas e cintos.

Meu pai comprou uma máquina Shaffer para costurar o solado das botas, única na região. Essa máquina era de difícil manuseio e eu, por saber operá-la, estufava o peito quando o fazia.

Nossa loja era freqüentada por estancieiros ricos, que encomendavam botas de pelica macia; pelos oficiais do exército, que usavam as mais caras, ou seja, botas de cano duro em cromo alemão, e pelos peões de estância, que escolhiam as de vaqueta com cromo.

Lembro que, quando chegava o final do mês, os peões ganhavam a grana e vinham torrá-la na cidade. A primeira parada deles era num boteco, para tomar um bom trago de canha, e nessa condição apareciam na sapataria para comprar suas botas, com os olhos brilhando de felicidade. As botas velhas chegavam completamente destruídas, muitas vezes aparecendo o dedão. Meu pai se preparava para esse evento com muitas botas número quarenta e quatro, forma larga.

Quando um cliente desses adentrava nossa loja, já tínhamos todo o ritual para vender nossos produtos. Começávamos por um grande copo d’água com gelo, para tentar minimizar o efeito do trago. A seguir jogávamos no lixo as botas e meias usadas e colocávamos uns três pares de botas de cores diferentes para o vivente experimentar. Neste momento começava uma das fases mais complicadas. Fornecíamos uma meia de lã, já prevendo dificuldades na penetração e, se ainda assim não coubesse no pé, outra bota maior era colocada à disposição do gaúcho, e a essa altura a cor da bota pretendida já tinha dançado! Entrávamos então na fase de encher com talco o cano e a meia de lã. Pedíamos para o homem ficar de pé e largar todo o peso do corpo para forçar a entrada. Minha nossa senhora !!! Quando o pé daquele índio entrava na bota era um grito de alegria e um monte de talco no ambiente, parecia um gol do Brasil no final da Copa. Por mais apertado que o pé do peão estivesse lá dentro, ele sempre batia o pé com a bota já calçada no piso e dizia:

- Loco de especialll !!!!

Não terminava aí. Eles não queriam sair com as botas novinhas em folha nos pés e pediam mais umas alpargatas. Meu pai olhava para mim e eu já entendia, aquele pé que entrou com tamanha dificuldade ... não iria sair fácil. Tínhamos que lançar mão da descalçadeira. Era uma peça de duas madeiras, sendo uma de base e outra, inclinada com uma espécie de mão, que abraçava os calcanhares da bota. Com um pé o peão pisava na descalçadeira, apertando-a para baixo, enquanto o outro pé, que estava na bota, era puxado para cima. Neste momento eu segurava o homem para que não caísse, e meu pai ajudava-o a puxar a perna para cima. A minha mãe, nervosa, costumava aparecer por ali, torcendo para a operação dar certo.

Bem, na hora de pagar, ele tirava todo o dinheiro da bombacha e jogava em cima do balcão. Neste momento ficava fácil convencê-lo a comprar uma guaiaca, onde ele poderia guardar todo aquele dinheiro. Guaiaca era um cinto largo de vaqueta com uma fivela de alpaca prateada com uma letra gravada, que tinha mais uma niqueleira visível, um esconderijo para dinheiro por trás e, ainda, um colder para um trinta e oito. A letra que tinha mais saída era A, porque dava muito grosso chamado Adão por aquelas bandas.

Vim para Porto Alegre estudar, trabalhei em empresas, me aposentei mas, por alguma ironia do destino, estou novamente vendendo e às vezes me faz falta uma descalçadeira.