Maya

Encontrei Tereza no supermercado, na sessão de cervejas. Ela estava agarrada com duas garrafas de cerveja artesanal, e eu estava me abaixando para pegar uma caixa de Antarctica sub-zero. Uma cerveja que eu quase tinha vergonha de dizer que gostava, mas que era o meu prazer culpado de várias sextas feiras. Ela sorriu quando me viu, apoiou as cervejas num espaço vazio da prateleira e veio me dar um abraço.

- Amigo. Há quanto tempo...

- Pois é Têca. Que bom te ver... Como você está?

- Estou ótima menino. Inclusive, tenho uma novidade. Estou viajando pro Canadá semana que vem. Vou fazer mestrado lá.

- Pô. Que massa. Você sempre quis estudar fora.

- É. Um sonho que se realiza.

- Ah. Maravilha. Vai comemorar agora? – Perguntei apontando para as cervejas.

- É. Despedida com o Boy. Aí vamos tomar umas coisinhas mais especiais.

- Já eu, que não tenho muito que comemorar, vou tomando as minhas baratinhas mesmo.

Tereza gargalhou comigo e voltou para a prateleira de cervejas especiais.

Quando me abaixei novamente para pegar a caixa de cervejas, Tereza olhou para mim e falou.

- Vê amigo. Será que tu pode me quebrar um galho?

- Dependendo do que seja...

- Você ainda está morando sozinho?

- Estou sim.

- Olha. Uma amiga minha vem de Florianópolis fazer uma prova aqui. Vai passar só dois dias. Eu ia receber ela em casa. Mas aí veio a notícia do Canadá e agora vou ter que viajar justamente nessa data. Você podia receber ela na sua casa? Ela é super de boa, bem hippiezinha. O namorado acabou com ela e resolveu fazer um mochilão sozinho. Ela ficou bem deprê e por isso resolveu tentar mudar pra cá.

Pensei em tudo o que Tereza disse e não sabia exatamente o que responder.

- Você acha que ela vai ficar confortável na casa de um homem que ela não conhece?

- Menino, ela não tem muita frescura não. Relaxa.

- Se é assim então. Acho que pode ser.

- Ai, que ótimo. Te ligo mais tarde pra confirmar e te dar os detalhes.

- Ok então. – Respondi, finalmente conseguindo retirar a caixa de cerveja da prateleira.

Tereza me deu um beijo no rosto e saiu em direção ao caixa.

- Têca? Você só não me disse uma coisa. – Falei antes que ela fosse embora.

- O quê? – Ela perguntou se virando novamente em minha direção.

- Qual o nome da sua amiga?

- Ah. É... Ela se chama Priscila.

Ela sorriu e desapareceu no fim do corredor.

Eu coloquei as cervejas dentro do meu carrinho de compras e segui riscando itens da minha lista de compras.

2

Tereza ligou no fim da noite e ficou acertado que Priscila chegaria na semana seguinte, em uma segunda feira pela manhã. Faria a prova à tarde e iria embora na terça feira. Achei tudo muito simples a princípio e quase esqueci que a garota viria até pouco antes dela chegar. Priscila bateu na minha porta às dez horas da manhã do dia combinado. Vinha carregando apenas uma pequena maleta.

- Bom dia. Eu sou Priscila. A amiga da Tereza. – Ela falou com um sorriso assim que eu abri a porta.

- Bom dia. Prazer. – Falei sucintamente.

Ela me deu um abraço e eu deixei que entrasse.

- Você fica nesse quarto. Eu só tenho um colchonete, mas ele é bem confortável. O banheiro fica bem ao lado, pra quando você precisar. – Falei meio mecanicamente.

- Tá perfeito. Eu não sou muito luxenta não. Vou ficar bem.

Priscila arrastou a mala até o quarto e parou para conferir o celular.

- Vou deixar você se arrumar aí. Vou descer para ir ao mercado, volto já.

- Você se incomoda se eu fumar? – Ela me perguntou.

- De forma alguma.

- Certo.

Saí do apartamento e fui ao mercado. Quando voltei, Priscila tinha acabado de sair do banheiro e a casa toda cheirava a Xampu. Ela estava recostada na janela com um cigarro de palha aceso e uma camisa que cobria praticamente até metade da perna, e que me deixou na dúvida se ela estava usando algo por baixo. Ela sorriu quando me viu e me ofereceu o cigarro. Eu balancei a cabeça e fui à cozinha guardar as compras.

- Vou parar um pouco pra descansar antes de ir fazer a prova. Você vai sair agora de tarde?

- Vou sim. Só volto à noite. Mas vou te deixar com uma cópia da chave... você sabe chegar no local da prova?

- Tô com o endereço aqui. Vou de Uber, não se preocupa.

- Então tá certo.

- Olha. Tem um espaço no seu congelador?

- Tem, por quê?

- É que na minha religião nós não podemos comer carne de animais abatidos fora de um ritual específico. Diferente desse abate industrializado... É uma questão de respeito com o animal. Daí eu resolvi trazer um pouco da minha carne para fazer algo para nós comermos hoje de noite.

- Ah. Sem problemas. – Respondi.

Priscila apagou o cigarro e jogou dentro de uma caixinha que usava para guardar as pontas. Foi até o quarto e voltou com uma vasilha de plástico nas mãos e eu a levei até a geladeira. Ela guardou a carne no congelador e voltou para a sala.

- Bem Priscila. Vou me arrumar para sair. Fica à vontade aí. Cuidado pra não perder a hora e boa prova.

- Obrigado. – Ela respondeu antes de fechar a porta do quarto atrás de si.

3

Quando voltei do trabalho, Priscila estava sentada no sofá da sala digitando algo no celular, ela usava um vestido de algodão branco, grosso, quase acinzentado.

- Boa noite. – Falei depois que fechei a porta.

- Boa noite.

- Como foi a prova?

- Ah. Foi mais ou menos. Vamos ver no que dá.

- Vai dar tudo certo.

- Vai sim... Olha. Eu estava esperando você chegar para fazer o jantar.

- Ah. Certo. Vou tomar um banho e já venho te ajudar.

- Você gosta de vinho tinto?

- Gosto sim.

- Combina com a carne que eu trouxe.

- E qual é?

- Porco. – Ela respondeu sorrindo.

Tomei um banho e quando voltei, Priscila estava na cozinha refogando algumas verduras.

Mesmo eu não tendo apresentado a ela o cômodo, ela parecia estar bem confortável na minha cozinha.

- Não se preocupa com nada. – Ela disse. – Eu dou conta. Mas vai abrindo o vinho aí... eu guardei na geladeira. É sempre melhor cozinhar bebendo alguma coisa.

- Abri a geladeira e vi que ela tinha comprado três garrafas.

Abri uma e enchi duas taças. Priscila deu um gole e voltou a se concentrar no refogado.

- Se passar na prova você vem morar aqui? – Perguntei.

- Espero que sim.

- É uma mudança e tanto de Floripa pra cá. Passei um tempo lá. Achei tudo muito tranquilo... Adorei a cidade.

- Você foi no verão?

- Não.

- Então é por isso. No verão Floripa fica super lotada.

- Acho que estou acostumado com a loucura de Recife, então termino achando qualquer lugar mais calmo que aqui.

- Deve ser isso. Mas Tereza me fala muito bem daqui.

- Pra mim não há melhor lugar no mundo. Acho que não conseguiria ser feliz longe daqui.

- Isso é algo bem intenso de se dizer, hein?

- Mas é verdade.

- Bem. Eu estou precisando é passar um tempo em algum lugar novo. Deixar o meu passado pra trás.

- Tereza me disse que você tinha acabado de sair de um relacionamento meio complicado.

- É. Mais parecia um calvário do que um relacionamento. Paguei todos os meus pecados.

- Imagino. Já tive minha cota de relacionamentos abusivos.

- Ninguém está imune a isso. Mas no fim tudo é ilusão. Maya está por todo lado.

- Maya? – Perguntei.

- Sim. Maya. A ilusão do mundo. É tudo o que cega o homem para a verdade. Tudo que é da matéria... tudo o que nos afasta do Deus que está dentro da gente.

- Acho que já li algo assim num livro que o meu tio me deu. O Baghavad Gita... conhece?

- Ah sim. A Sublime canção. A mensagem de Krishna pra a humanidade. É perfeito.

- Lembro que fiquei bem encantado quando li pela primeira vez. Foi num tempo que eu era mais feliz.

- E o que mudou de lá pra cá?

- Vida... Maya. – Respondi.

Ela parou para me olhar diretamente nos olhos, mas não falou nada antes de voltar a se concentrar na comida.

- Pelo que Teresa me disse não imaginei que ia gostar tanto de conversar com você. – Ela falou finalmente, esticando uma colher com um pouco do molho para que eu provasse.

- Ela falou que eu era chato? – Perguntei curioso.

- Não, bobo. Eu só não sou de gostar de pessoas assim, instantaneamente.

- Obrigado. – Respondi sem graça.

Tomei um gole do vinho e provei do molho que ela me ofereceu.

- Está bom de sal? – Ela me perguntou, assim que eu provei.

- Está sim.

Então Priscila jogou a carne que havia picotado dentro da frigideira e tampou.

- O arroz está quase pronto. Arruma a mesa enquanto eu termino aqui? – Me pediu.

Saí da cozinha e preparei a mesa da sala para o jantar. Terminamos primeira garrafa de vinho justamente quando a comida ficou pronta. Priscila serviu o jantar para nós dois. Abri a segunda garrafa e jantamos sem falar muita coisa.

Assim que eu dei a última garfada, ela me perguntou.

- Gostou?

- Muito bom. Muito bom mesmo.

- Que bom... Minha vontade agora era só um cigarro e dormir por umas doze horas.

- De que horas é o seu voo amanhã?

- Às 15h. Preciso sair daqui depois do meio dia.

- Ah. Dá pra descansar bastante então.

Priscila fumou o seu cigarro e finalizamos a garrafa de vinho antes de irmos dormir.

Lavei os pratos enquanto ela fumava na sala e nos despedimos.

Adormeci pensando sobre as ilusões que tinham me afastado da felicidade e em como eu tinha me acostumado a viver, tão distante do que eu gostaria de estar vivendo.

4

Acordei com Priscila sentada na minha cama. Ela estava completamente nua, eu sabia... Mesmo que a luz estivesse apagada. Ela se enfiou debaixo do meu lençol e me beijou.

- Você me acha atraente? – Perguntou.

- Acho sim. – Respondi sem conseguir disfarçar a minha surpresa com aquilo tudo.

- Nunca mais vamos nos ver. E eu quero que você faça amor comigo ciente disso. Se você quiser, claro.

Não respondi. Pelo menos com palavras... Mas transamos a noite toda. E talvez por ela ter dito que nunca mais nos veríamos, eu tenha aproveitado de um jeito que não teria se fosse de outra forma. Adormeci com a cabeça enfiada no meio dos seus cabelos, enquanto ela sussurrava alguma canção em espanhol. Quando eu acordei, Priscila não estava mais na cama. Olhei a hora no celular e já era perto de meio dia. Fazia muito tempo que eu não tinha uma noite de sono como aquela.

Senti o cheiro da fumaça do cigarro dela vindo da sala, e aí tive certeza que ela ainda não tinha saído. Me vesti, escovei os dentes no banheiro e dei de cara com sentada à beira da janela. Já estava arrumada e de mala feita.

- Dormiu bem? – perguntou-me.

- Sim. Engraçado que não sonhei com nada. E em geral eu sempre tenho sonhos.

- Esse é o melhor tipo de sono.

- Está na sua hora né? – Perguntei.

- É. Tive medo que você não fosse acordar antes de eu ter que sair.

- Que bom então que eu acordei.

Ela terminou o cigarro, veio até mim e me deu um abraço.

- Obrigada por tudo. Você é maravilhoso.

- Não foi nada, Priscila.

Ela me deu um beijo, e foi até a mesa pegar o celular. O Uber não demorou a chegar, e eu me despedi dela na porta. Ela subiu no carro e desapareceu na esquina.

Foi só nesse momento que eu tive certeza que nunca mais a veria.

5

Quinze dias se passaram na normalidade da minha vida. Exatamente como tinha se passado antes do meu encontro com Priscila. Mas algo em mim estava diferente e eu tinha colocado na minha cabeça que precisava mudar a minha vida. Eu só não sabia exatamente como. Tereza me ligou às nove da noite.

- Alô. – Falei assim que atendi.

- Oi. Menino. Preciso te contar algo. – Tereza me falou alarmada.

- O que foi? – Perguntei.

- Priscila foi presa.

- Como assim?

- Homicídio.

- É o quê, Tereza? Você tem certeza?

- Sim. Tenho certeza. Ela matou o ex namorado. Como eu te disse, ele acabou com ela e ia fazer um mochilão. Todo mundo achava que ele tinha viajado. Mas ela o matou um dia antes da viagem pra Recife.

- Não consigo acreditar nisso. – Falei, sem saber o que pensar.

- Mas foi exatamente isso, amigo. E o pior você não sabe. Estão dizendo que ela matou e cortou o cara em pedaços... Guardou a carne em vários vasilhames e congelou. Parece até que ela comeu. Eu nem acreditei quando soube, até que saiu no jornal. Vou te mandar o link por mensagem.

- Ok – Respondi, antes de desligar o celular.

Segundos depois chegou uma mensagem de Tereza com o link.

Abri no celular mesmo e lá estava a notícia. Havia inclusive uma foto dos vasilhames onde ela tinha guardado a carne do defunto. Eram idênticos ao que ela tinha trazido consigo na viagem. Larguei o celular no chão e corri para o banheiro. Vomitei até não ter mais nada para vomitar no estômago, mesmo sabendo que tudo aquilo era inútil.

Fui até a geladeira e olhei para a garrafa de vinho que não havíamos bebido.

Abri e enchi uma taça.

Mesmo sem nunca ter gostado de fumar, naquele momento, tudo o que eu queria era um cigarro.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 13/05/2022
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