Proteção de São Jorge

O baiano Donato aterrizou em Porto Alegre junto com a comitiva do governador gaúcho, que havia visitado a capital baiana para um evento político. O esperto mandatário convidou o Donato para fazer parte do seu estafe, pois as recomendações do homem eram as melhores possíveis. Homem de confiança, excelente guarda costas e ótimo atirador eram algumas das credenciais.

Quando o então governador não conseguiu a reeleição, seu substituto colocou o Donato como chefe do DTO (departamento de trânsito e obras), que era uma quadra inteira no aterro da Azenha, para abrigar as máquinas e veículos oficiais e logo o Donato se tornou o xerife do bairro.

Donato, mulato de olhos verdes, filho de São Jorge, com aquela corrente do Santo protegendo o pescoço e o corpo inteiro.

Morando sozinho em uma casa do depósito, o Donato organizou e limpou o local de modo que seu trabalho facilitou o acesso à uma vilinha de casebres, que existia no banhado nos fundos do DTO.

Ciente das necessidades daquela meia dúzia de famílias, o baiano mobilizou a comunidade para melhorar as casas, conseguiu móveis e utensílios domésticos, bem como roupas e agasalhos. Dizem que, nas horas vagas, ele mesmo consertava telhados, trocava tábuas corroídas de cupins, fazia tampões de janelas e portas, as quais pintava com restos de latas de tintas. Assim, a casebralha se transformou em uma colorida rua de casas palafitas e o banhado um imenso lençol de juncos e flores silvestres.

Segundo a cartilha do Donato, lugar de criança era na escola, então ele mesmo fiscalizava a criançada rumo às salas de aula. Quanto aos meninos maiores, ele encaminhava para pequenos serviços para que pudessem ajudar na renda familiar, porém sempre no turno inverso ao da escola.

“Escola é o rumo da vida” - dizia o Donato – e a gurizada acreditava.

Assim, o Donato fincou pé nas terras do Sul e se aquerenciou ao bairro da Azenha e foi na vilinha, que ele conheceu os olhos negros da Jandira, que estava viúva e com quatro filhos homens para criar. O baiano não foi morar com a Jandira, eles namoravam de vez em quando, mas a presença do Donato norteava a vida da mulher e dos meninos.

Então, veio aquele dia, que ninguém nunca esqueceu.

Último dia de dezembro e todo mundo na expectativa do novo ano.

Na vilinha, muita comida sendo preparada, flores nos cabelos das meninas, bombinhas de estalo explodindo aqui e ali.

Foi quando a bebida anuviou os sentidos e dois vizinhos começaram a discutir, por bobagem, coisa meio sem motivo.

Pois não é que o Juca valentão puxou uma faca e partiu pra cima do João e quando o golpe era certeiro, o Carlos, filho mais velho da Jandira, se intrometeu no meio e aparou o golpe com seu peito de menino.

Assim, num minuto o céu que era azul se vestiu de vermelho.

Ouvindo a gritaria o Donato correu e pegou o guri nos braços, depois sumiu dentro de casa.

“Tem que levar no pronto socorro” - gritavam uns.

“O guri já está morto” - sussurravam outros.

No desespero a Jandira desmaiou e não viu mais nada.

Depois de uns dez minutos a porta da casa do Donato se abriu e ele trouxe o guri, meio tonto, o peito ainda sangrando, mas vivinho e enrolado em um lindo manto vermelho, que brilhava nas luzes do entardecer.

“Não foi nada - gritou o baiano e o silêncio se fez. “Alguém aí para dar uns pontos”?

Dizem que os puros de coração puderam ver o São Jorge atrás do Donato envolvendo o menino com sua capa escarlate.

Ondina Martins
Enviado por Ondina Martins em 14/06/2022
Código do texto: T7537839
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