Dia de São Pedro - 1958

Domingo de verão em Belém do Pará, norte Brasil. No térreo de sobrado alugado em rua de nome de frei (Gil de Villanova), que findava em frente ao mangueiral de grande praça que, devido aos colonizadores portugueses terem construído paiol para a guarda de pólvora, ficou conhecida como Largo da Pólvora, pai e filho, no início da tarde, escutavam, pela Rádio Bandeirantes, com narração de Pedro Luiz (ou Edson Leite, (a memória se fez dúvida), a final, da Copa do Mundo de Futebol - 1958, entre Brasil e Suécia.

Apesar de o susto inicial com gol dos suecos, o Brasil estreava o título de campeão mundial com dois gols de Vavá, dois do muito jovem Pelé e o primeiro de Zagalo, 5x2.

Em continuidade aos festejos juninos da noite anterior, de sábado, o filho, o Zé, saiu à praça para participar da festa da vitória, enfeitada pelo verde do mangueiral da praça e o amarelo ouro de outra festa, a solar do verão do norte brasileiro, regido pela linha do equador.

E, o dançar de quadrilha, ou de rosto coladinho, a prática tradicional de “passar fogueira”, o degustar de petiscos e bebericar o “derruba timidez” da noite anterior é substituído pelo, não menos tradicional, carnaval de rua comandado pelos “Piratas da Batucada”, bloco patrocinado pelo “Consulado Americano”, instalado em prédio na mesma rua de nome de frei.

O Zé vivia seus dezoito anos, época em que são construídas as poucas, mas, as mais duradouras amizades. Zé, enquanto sambas e marchas rancho bolinavam até as mangueiras, deixava seu corpo ser levado pelo ritmo e seu desafinado cantar das melodias, avista Dudu, uma dessas amizades.

Certa hora, daquela alegre e anárquica celebração de “Brasil campeão do mundo”, Dudu grita: “Zé passa as nove em casa, para continuarmos essa farra numa festa junina para São Pedro.

Zé retorna meio rouco, suado e, sem perder tempo, prepara-se para outra noite de festejo junino. Vai ao encontro de Dudu e rumam à uma das mais tradicionais festas juninas da cidade, promovida por reconhecido dono de loja de produtos e estúdio fotográficos. A festa ocorre em plena rua, em espaço frontal a sua mansão, em bairro nobre de Belém.

Naquela época, Belém não era como nesses anos que iremos tentar o hexa, 2022, com mais de milhão de habitantes, tinha em torno de 130.000 habitantes, mas existiam certos personagens que eram muito conhecidos, por quase toda Belém. Era o caso das “gêmeas douradas”, ou “as belas Anas” – Ana Maria, Ana Tereza, filhas de Dona Maria Tereza e do Dr. Magalhães.

Nos festejos juninos daqueles tempos em Belém, existia o costume conhecido como “passar fogueira”. Consistia em previamente se combinar com alguém qual seria o laço afetivo a ser dado entre dois, no ritual de “passar fogueira”. Iniciava-se com mãos dadas de um lado da fogueira. Mãos que se separavam, enquanto os dois pretendentes ao laço afetivo combinado passavam ao largo, sob o calor ardente das chamas da fogueira, até ultrapassarem sua extensão. Mãos se reencontravam no outro fronte da fogueira e repetia-se o movimento em sentido contrário. Enquanto realizavam esse ritual, numa espécie de dizer mágico para a construção do laço afetivo, os pretendentes, numa jura em dueto, diziam em alto e bom tom: “Santo Antônio disse, São João confirmou, para sermos (primos, irmãos, padrinho e afilhado, amigos, namorados...), pois Jesus Cristo mandou”.

Assim, existiam muitos amigos, primos, irmãos ...de fogueira na cidade e, esses laços faziam tanta diferença, como se virtuais (de fogueira) não fossem.

Ao entrarem nessa festa, Zé numa exclamação de bela e agradável surpresa, num tom contido para não “queimar o filme”: “Dudu, olha as “belas Anas” próximas à barraca do munguzá, a direita do tablado-salão de dança”.

Vem comigo, impositivo, respondeu Dudu; e acrescentou: vamos nos tornar hoje, também campeões. Dudu quase arrastando Zé, por conhecê-lo tímido e ainda não ter tomado o “beberico antídoto”, dirigiu-se às “belas Anas” e fazendo jus a sua fama de persuasivo, espécie de bruxo do convencimento do próximo, fez a apresentação: “agora entendo a razão dessa linda noite de luar e desse céu bordado de estrelas. Assim se aprontaram, para testemunhar o encontro das gêmeas, conosco, gêmeos também”.

Ana Tereza, num tom de desprezo àquela infantil mentira, sobre a geminidade Dudu e Zé, sorriu com ironia e contestou, num tom quase de deboche: gêmeos tão diferentes assim. Ana Maria, despindo-se de sua timidez, valida a impressão da irmã, acrescentando: e tem mais, certa vez estava com papai, quando ele foi provar seu terno com o alfaiate, e vi seu “irmão gêmeo”, colocando mais risos irônicos naquela apresentação, que se anunciava como fiasco.

Como golpe de misericórdia a bela e tímida Ana Maria acrescentou: papai disse-me que teu “irmão gêmeo” era neto do alfaiate, então, se dirigindo a Dudu, também és neto do alfaiate?

Foi aí que a genialidade em persuasão de Dudu, livrou a apresentação daquele naufrágio pressentido por Zé. Não, não sou neto do avô do Zé, pois nossa geminidade não é como a das duas “belas Anas”, somos gêmeos de almas e mais, somos, também, “irmãos de fogueira”.

A tradicional dança da quadrilha se encerrara, o som entra com música para danças aos pares. Dudu percebe uma confusão de sentimentos envolvendo as gêmeas: encantamento pela poética apresentação; espécie de necessidade de desculpas pela ironia à geminidade, entendida como mentirosa; Zé não ser indiferente à Ana Maria; e a disposição à dança, espécie de humor genético dos paraenses.

Assim, Dudu, com olhar de cão pidão, propões às gêmeas: vamos aproveitar a benção de São Pedro, a alegria da vitória do título mundial e ´para marcar esse encontro, nosso, dos quatro gêmeos, “passando fogueira”. Ana Maria com Zé e eu contigo, Ana Tereza.

Ana Tereza responde pelas duas: não vejo porque não aceitarmos, poderemos ser “gêmeos de fogueira”. Ana Maria, sai de tímida mudez e exclama, excelente, original demais.

Os quatro se dirigem para a fogueira Ana Tereza e Dudu realizam primeiro o ritual e depois Ana Maria e Zé.

Em vinte e nove de junho de 1970, mais uma vez, Belém acabara de celebrar o tricampeonato mundial de futebol, celebrava São Pedro e na Igreja de santa que inspirou o nome as gêmeas, Sant’Ana, mãe de Maria, padroeira das mulheres casadas e da cidade de nascimento do Zé, Óbidos, o padre Zé Maria celebrava o casamento dos “quatro gêmeos de fogueira”, gêmeos de alma: Ana Tereza com Dudu; Ana Maria com Zé.

Vivem felizes e pretendem celebrar o hexa e muitos outros aniversários de casamento, sob às benções de Sant’Ana e juninas.

Pasmem, até hoje, ainda se escuta identificar alguém como: é neto de uma das “gêmeas douradas”, ou é afilhado de uma das “belas Anas”...

OS: Apesar desse conto ser baseado em fatos reais foi demais romanceado, com criação de personagens, fatos, cenários...

A motivação foi uma narrativa criada em terras além mar pelo reconhecido autor deste recanto Ferreira Estevão, quando ele aborda sobre amizade e ilustra com a de Jorge Marques. Essa de Dudu e Zé, personagens adaptadas, ilustra amizades sexagenárias reais, iniciadas nos tempos da tradição de “passar fogueiras” nas festas juninas realizadas em Belém do Pará, norte Brasil.

Os nomes são fictícios e se homônimos existirem não passam de mera coincidência.

J Coelho
Enviado por J Coelho em 18/07/2022
Reeditado em 18/07/2022
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