Abriu a porta do carro, olhou para trás, acenou e adentrando o veículo, buscava o retrovisor: cena em câmera lenta. Enquanto alguns se despediam e se abraçavam, ela foi se deixando levar pelos sentimentos e os olhos viraram gotejador. Os óculos escuros eram o escudo que garantia o disfarce. Considerada a fortaleza da família, se via vulnerável. A árvore genealógica perdia o galho que sustentava os corações enfartados de luta.

Na escola da vida foi aluna disciplinada, apesar das matérias que foi obrigada aprende cedo. O pai se recusou a registrá-la por sua cor que não condizia com sua raça. Também pudera, ele descendente de alemães, se envolveu com uma brasileira nata, mestiça em todas as origens, e queria uma prole dominante com base em suas ascendências? Viu-se de lar em lar, enquanto sua mãe buscava sustento. Ela era triste, diziam. Também com a carga que carregava, felicidade era subtraída em porções milimétricas e revelavam um déficit irrecuperável.

Sepultar a mãe, naquela tarde, era apagar suas memórias afetivas mais ternas: a única que nunca soltou sua mão. A caligrafia trêmula escrita sobre a perna, seria conservada para sempre naquele diário. Uma espécie de amigo que cultivara ao longo desses 32 anos. Lá estava a imagem do pai, redesenhada em vários ângulos, buscando identificação. Estavam também as dores despertas da solidão de cada fase. Nunca se sentou na primeira fileira da existência. Então o quadro branco e o pincel azul eram borrados. Queria ter o poder de apagar a dor que sentia. Sua maior professora tinha se aposentado, sem avisos, sem despedidas.

Certeza tinha de que a viagem era curta e que a única companheira havia descido na  última estação. A vida tinha lhe dado lições duras.

A porta do carona se abriu e um olhar meigo e dócil a visitou, e por um segundo, esqueceu-se da dor. Alice trazia uma flor nas mãos. Tinha poder curativo. E como quem soubesse o que a vida reservava, ela soltou:

- Enquanto houver uma mão pra cuidar, o canteiro da vovó vai dar flores, não vai?

- É, filha. Na escola da vida a porta que se abre é a do mundo e o grande mestre é o tempo... Quem sabe você cuida?

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 02/08/2022
Reeditado em 02/08/2022
Código do texto: T7573443
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