A VIAGEM

“- Não morras, pai, não! – grita e depois senta-se com aquela pergunta ainda no rosto e os seus olhos escuros, húmidos e brilhantes como estrelas.Harry não deveria deixar assim pendente essa pergunta, o rapaz depende dele.

- Bom, Nelson – diz. – Só posso garantir-te que não é assim tão mau.

Harry pensa que deveria dizer mais qualquer coisa, o rapaz parece terrivelmente expectante, mas é o suficiente.Talvez.Suficiente.”

John Updike in Rabbit at Rest

Ele sai do carro, atravessa a rua, pega no saco que a Luisa lhe estende e sorri.Volta a sentar-se ao volante, acena e parte.

Lembra-se da sua velha prima, máscula, magoada e com voz de aguardente lhe dizer do nada numa festa de aniversário em casa dos parentes abastados, a decadente descendência do ourives afamado:

- A vida é uma viagem muito breve.Há que viver cada segundo avidamente.

Na altura,um jovem perfeitamente inexperiente não percebeu nada.Encolheu os ombros e fez menção de concordar só porque sim.

Atravessou as ruas e avenidas, dirigiu-se à saída da cidade, rumo à autoestrada.E de relance, reparou na bengala, a seu lado, no banco, á sua direita.

“Que miséria!Já preciso de bengala.Como um velho cavalheiro.De pés para a cova!” – assentiu, com espanto, admirado da sua própria lucidez.

Conduziu sereno e calmo e estranhou friamente o céu, a atmosfera e a paisagem à sua volta.

“Parece que desembarquei no purgatório”.

Interrompeu o som dos Platters para ouvir a rádio.Uma locutora absurdamente e com entusiasmo anunciava com voz melada:

- Os incêndios continuam.É pior que uma fogueira pegada…

Sim, os campos já não eram verdes mas amarelos, secos, despojados e o ar que se respirava um misto de fumo e ventania atravessado de secura.

De ano para ano, sempre o mesmo.Um bando imenso de imbecilidades comentadas na televisão, pagas a preço de ouro e a lançarem as culpas exclusivamente ao Governo.

Fez o quilómetro cem, cento e vinte e parou na estação de serviço de Leiria para tomar um café e verter águas.Pôs os óculos escuros e um semblante carregado, tipo “não me olhem, não me falem, quero estar só” à Greta Garbo.

Havia turistas e casais novos a arrastar os filhos pela mão, os homens de calções a chinelar,as mulheres esvaídas e mal humoradas vestidas nas lojas dos chineses e as crianças encaloradas e descalças com os sapatos na mão, a pedirem aos pais guloseimas enjoativas.

“São tão descuidados, tão indelicados, tão desprovidos” e nem quis responder à pergunta que se aproximava rapidamente, vinda do horizonte na sua mente.Serão estes a tal camada infeliz,inferior e deseducada de uma sociedade hipotecada e dividida?”

Ele tinha dezasseis anos e a Mãe conduziu-o, segurando-lhe no ombro até à porta da casa de saúde com um olfato azarento, a desinfectante e clorofórmio:

-O Avô está muito mal.Vai despedir-te dele.

Ela abriu a porta e empurrou-o devagar e com suavidade.

Transido, ele aproximou-se da cama onde a sua única grande referência masculina se debatia num duelo violento com a morte.

O Avô fez um gesto para que o neto se aproximasse e pegou-lhe na mão:

-Vem aqui, filho, vamos despedir-nos.Eu cheguei ao fim desta viagem e vou deixar-vos em breve, talvez esta noite.Não suporto mais as dores…

Gosto muito de ti, Pedro e se houver um céu em que eu desde já não acredito, se eu puder, velarei sempre por ti. Onde quer que estejas.

Ele reparou que dos olhos verdes do avô escorriam lágrimas de sofrimento e , a custo, procurou sorrir e tranquilizá-lo:

- Vai melhorar, Avô.Não diga isso!

Mas ambos sabiam que ele,o rapaz, mentia.

Prosseguiu o seu caminho com os olhos postos no futuro próximo.Embrenhou-se no itinerário paralelo, percorreu a serra e iniciou a descida em direção ao rio.

Passou pelo bar, à beira da estrada inclinada, onde se bebiam copos, se fechavam negócios e se marcavam encontros furtivos.

Atravessou a serra, pelo meio das escarpas cavadas, ziguezagueando pelo rio de caudal escasso e calmo, virou à direita em direcção ao lugar onde ficava a casa.

Abriu o portão da pequena quinta, entrou com o carro pelo caminho outrora coberto com latadas de uvas e que dava acesso à garagem.

E, de súbito, apercebeu-se que se tinha esquecido do controle do alarme em Lisboa.Discorreu que a única hipótese de entrar em casa sem que o dispositivo disparasse e o seu silvo agudo ficasse a tocar até de manhã era pedir à governanta que o desactivasse com o que ela usava.

A Senhora Amélia já passara os setenta anos, tinha a pele curtida , com rugas e ouvia mal mas sentou-se ao lado dele no carro, muito hirta e composta.

- O senhor vai estar por cá muitos dias?

- Uns dois ou três.

-Como?

Ele abriu o vidro da porta do condutor, afinou a voz e gritou em voz de falsete:

- TRÊS!

- Foi a conta que Deus fez – respondeu a senhora que não encontrara nada mais interessante para dizer.

Pedro agradeceu-lhe muito.Voltou a levá-la a casa, depois de desativarem o alarme e correu a jantar na única tasca familiar da aldeia.

Aí observou a versão lusa de uma verdadeira família à italiana.O pai encolhido, a mãe,uma matrona dominante e cozinheira do estabelecimento, os filhos que aproveitavam para lá comer, já separados e desavindos das mães dos seus filhos , os netos barulhentos e implicativos entre si por causa dos jogos electrónicos e dos ipads.

“São mais que as mães”pensou ele, desconsolado.

Voltou para casa e trancou os portões e as portas.Acendeu as luzes exteriores.Deixou-se embalar com os ruídos da noite.E pensou que algo teria corrido terrivelmente mal na sua vida.

Uma luta insana pela sobrevivência.Uma luta sem armas.Desmedida.Um esgar de defesa contra a incomensurável inveja que grassara sempre à sua volta.Tinha desistido dos seus sonhos há muito tempo.Das carreiras que provavelmente amava.Abdicara.Conformara-se e desistira.

Uma pobre gaivota faminta não pode voar muito alto, tem que se contentar com o voo rasante para capturar o peixe.

Já tivera doenças mais ou menos graves.Operações que lhe removeram a vesícula, amígdalas e sinais perigosos.O divórcio.Nunca quisera ter filhos para não perpetuar o sofrimento em seres inocentes.Assistira à morte agonizante de entes queridos.Tinha mesmo sofrido um derrame cerebral.

Não queria uma decadência pura e simples.Um sofrimento escusado.Uma agonia lenta.

Queria ser o autor e decisor do seu próprio fim.

Colocou os morangos, o vodka, o gelo e despejou o frasco de comprimidos na misturadora.Deixou o batido ficar pronto até desligar o botão.Vestiu o pijama imaculadamente branco.Abriu de par em par as portas que davam para o terraço no rés de chão.Bebeu a mistela de um só trago.Caminhou descalço quase ás escuras.Ouviu o piar da coruja.Sentiu o orvalho da noite nos pés e transpôs a amurada para aceder à relva.Inspirou fundo.Sentiu uma letargia quente apoderar-se de todo o corpo, cambaleou, deu mais uns passos e caiu de bruços.Imóvel.A sufocar.

- Estou pronto – murmurou num suspiro débil - Ninguém me vai encontrar a tempo.

No céu as estrelas brilhavam imóveis e frias, as únicas testemunhas até que uma delas, cadente riscou o céu num segundo e desapareceu.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 09/08/2022
Código do texto: T7578911
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