(sem título)

Mal tirara as roupas ainda suadas da noite que acabara, chutando-as para o lado com um desinteresse casual, e já se sentira liberta. Era nessa hora do dia, quando o sol já se elevava com vigor aquecendo todo um mundo lá fora, que Melinda, de pé sob o azulejo frio daquele pequeno banheiro, lamentava toda a sua existência. Como se o sol, fonte de vida, também fermentasse toda a sua angústia, há pouco camuflada e acolhida na escuridão e na noite, até o ponto insuportável.

Na luz, nua e verdadeira, a angústia explodia em choro, em asco, em negação. Via no espelho seu corpo de mulher, puro e livre, e desejava possuir o reflexo. Sentia vergonha daquela sua pele profana e suja de conformismo. Desejava rasgar-se em pedaços, cheios de pecado, e libertar sua alma menina do destino voraz. Entre espasmos e soluços, todo seu corpo tremia de incredulidade, expulsando jorros de lágrimas ardentes, que por fim purificavam-na e restauravam a calma.

A respiração, agora mais devagar e ritmada, refrescava e banhava suas fraquezas. Podia já encarar seus olhos no espelho, apiedando-se daquela perda de controle, consolando a si própria com sorvos de ar renovado e um banho de água nas faces quentes.

Como um ritual que se encerrasse, ela podia agora limpar do corpo o suor e pôr-se a relaxar sob as águas, como quem nada teme e por nada anseia. Mais tarde, recolheu as roupas do chão, com cuidado e vaidade, já pensando em quais escolheria para a próxima vez.

E deixou a rotina cair sobre si... Aceitou o sono merecido, não recusou sonhos ou pesadelos. De fato, sentiu-se refém e agente do próprio destino. Nem culpada, tão pouco vítima.

Ainda era claro quando despertou. O sono domara sem muito esforço a sua angústia íntima, e ela levantou-se quase feliz, como os que esquecem a própria dor por insanidade ou inconsciência. Como tinha sempre muito o que fazer, já que era só, tratou de aprontar-se para sair.

Sempre gostara de pintar o rosto. Achava seus olhos pequenos demais, os lábios sem muito contorno. Podia então sentir-se como o mágico e a criança que assiste ao espetáculo: maravilhando-se com o olhar ousado que surgia da ponta do lápis e do pincel, invejando seus próprios lábios rubros e recém delineados.

Mas hoje não. Não quis macular a limpidez que via e sentia. E saiu de casa, vestindo no rosto a si própria.

Toda vez que saía, um receio latejava no peito, por mais que todos a tratassem sempre com educação e até carinho. Era mesmo um receio sem cabimento, para uma pessoa tão doce, gentil e que inspirava simpatia. Retornava à casa invadida por um alívio, como se tivesse tido sorte em continuar parecendo boa e gentil. Sentiu piedade e gratidão àqueles para quem ela era simplesmente uma boa moça; e lembrou-se com desconforto daquelas que invejam sem disfarce a sua beleza e o quanto é querida e desejada, e zombam de sua doçura. Essa lembrança assustou-a, como uma gota inesperada de tristeza que perturba uma poça serena. E deu-se conta de que não pensara muito sobre aquela noite, exceto ao pendurar na porta um cabide com peças vermelhas.

Sentiu-se de repente fraca e desamparada com o misto de covardia e coragem que nunca sentira antes. Uma ousadia desconhecida, quase rebelde, parecia duelar com uma passividade realista dentro dela.

E como feitiço, a noite que agora caía, tão familiar e tão segura, tornou tudo mais claro. Selvagem e virginal, ela penetrou na noite a céu aberto. Sem rumo e sem pressa, deixou-se levar pelas ruas e becos que agora parecia nunca ter visto. Era estranha, num meio estranho, em que só a noite lhe pertencia.

Lembrou que era de carne e osso quando um esbarrão a fez encarar um rosto.

Era ele. Quis saber, preocupado, o que ela fazia por ali àquela hora, sozinha, perdida. Tocou seus ombros frágeis, como fizera na noite anterior, e ela, num choque, sentiu todo o corpo gelar.

Uma dor, de quem acabara de ter consciência da própria existência, se fez sentir fisicamente em casa centímetro daquele corpo tão pequeno, intensa demais para que se pudesse suportar. As mãos dele, pousadas tão de leve nos ombros dela, aprisionavam-na, e ela não achava coragem sequer de abrir os olhos, tomada de um medo de abandono, desejando ser selvagem e virgem e pertencer à noite novamente.

A dor era tanta, a ponto de contrair seu corpo, que mesmo ela se surpreendeu com a sensação engraçada que acabara de percorrer seu rosto: uma gota de chuva caíra sobre ela. O homem também reparara, e aproveitando desse segundo de distração, ela, sem dificuldade, desvencilhou-se e correu, deixando-o ali confuso e só na chuva que chegara sem aviso.

Achou abrigo em um beco, escuro e sombrio, mas vazio, e era isso que importava. Não tinha certeza se tinha controle sobre seu corpo, doía insanamente em toda parte, quase anestesiando inclusive seus pensamentos. Mas a chuva agora caía grave e intensa, violentando seu rosto prazerosa e insistentemente. Ela se rendeu.

A noite chorava por ela, banhava-a tão intimamente nas próprias lágrimas, um rito secreto. Sentiu todo seu corpo tornar-se água. Não tinha mais força alguma senão aquela nova e selvagem capaz de desbravar qualquer caminho, de visitar e penetrar tudo, tornar-se tudo. Ficou ali até a chuva cessar, até o último soluço da noite.

Como água que se joga à terra, apaixonada, e cumpre intensamente seu papel de chuva, até a hora do retorno à sua origem - um ciclo se completando - Melinda tomou de volta o corpo que era seu, secretamente transformado, sabendo apenas que teria de cair sobre a terra, apaixonadamente, e ser chuva.