(sem título)

Sempre fora uma criança reclusa, solitária. Ainda sequer andava e já entretia-se sozinho, sentado em meio a pelúcias e bloquinhos de madeira, empilhando, espalhando, desmontando seu pequeno universo. Quando chegou a hora de entrar para a escola, pouca coisa mudou: se em casa brincava só, passou a fazê-lo também no novo ambiente.

Logo despertou estranheza, principalmente na professora, que logo a manifestou com a mãe do menino. Mas o que mais ela responderia? Ele sempre fora daquele jeito, e nunca fora desobediente ou mal educado; então ela achava que afinal não deveria ser um problema tão grave assim o menino gostar de brincar sozinho.

À medida em que foi crescendo, fez-se necessária a interação com os colegas: havia trabalhos em grupo e a escolinha de futebol, na qual entrara por insistência – entenda-se “ordem” – de sua mãe. Ele não se negava a nada, mas cumpria sempre o mínimo possível. Na adolescência, acabou rotulado como o “excluído”, o que aumentou ainda mais o estranhamento e fez dele alvo de constantes zombarias dos outros meninos.

Mas nada disso o afetava, ele estava satisfeito consigo, divertia-se imensamente de um modo que nenhum dos outros jamais experimentaria. Podia inventar qualquer brincadeira que quisesse, ele se bastava. Criava personagens, fazia vozes, sonhava castelos e reinos, dragões domesticados. Em casa, olhava-se no espelho hoje e admirava o guerreiro medieval de cabelos esvoaçantes e selvagens; amanhã vislumbrava o arqueiro ágil que saqueava carroças de contrabando, saltando de detrás de moitas de travesseiros e causando alvoroço.

Sua mãe, que antes defendia que o filho era tímido e por isso não interagia com as outras crianças, agora atribuía ao comportamento do filho as mudanças e revoluções da adolescência; se alguns meninos ficam agressivos, e outros ficam rebeldes, seu filho optara pela não socialização.

Passavam-se os anos e ele continuava o mesmo, recluso e solitário, por escolha própria. Certamente que ele não era o único menino solitário da escola, havia aqueles sem aptidão para os esportes, que nunca eram chamados na hora do jogo e por isso andavam cabisbaixos, com a certeza de que nunca pertenceriam ao grupo dos meninos legais. Havia aqueles esforçados que sentavam na primeira fileira, olhos grudados no professor, e nunca deixavam os outros copiarem as respostas na hora da prova. Tudo o que esses meninos queriam era a aceitação do grupo, sentir-se parte, ter aquela confiança e auto-estima dos populares.

Ele não. Era tão excluído quanto àqueles, mas de forma alguma era cabisbaixo ou triste. Pelo contrário, tinha um ar arrogante de quem ama e vê somente a si, e era assim afinal que ele era.

Chegava a empolgar-se de prazer ao pensar e elaborar teorias sobre como era superior aos outros adolescentes de sua idade, sobre como era mais maduro por ter atingido o pleno conhecimento e segurança de si mesmo. E, claro, tinha orgulho disso.

Concluiu o colégio com excelentes notas, dignas do aluno superior que se considerava. E logo entrou para a faculdade.

Aconteceu no primeiro dia de aula. Um rapaz um pouco mais alto do que ele, cabelos mais rebeldes e uma pele mais morena, sentava-se na cadeira da primeira fileira, encostado na parede, numa atitude prepotente. Era como um desafio, o que ele descobriu trazer uma sensação surpreendentemente instigante.

- Silas, e você? – estendeu a mão, uma contração involuntária dos lábios traçou um sutil sorriso.

- Raul, prazer. – sorriu também, alcançando a mão pálida com seus dedos morenos e vivazes.

A identificação foi imediata: tornaram-se amigos. Raul era em nada parecido com os meninos que Silas conhecia, e não saber explicar o porquê disso era mais um intrigante encanto em ter Raul como amigo.

Eram inseparáveis. Nas aulas, nos fins de semana, nas madrugadas de estudo. Para Silas, Raul agora era parte daquele mundo de fantasia só seu, de algum modo ele se mostrara digno de pertencer a tudo aquilo.

E Raul nunca recusou ou se incomodou com isso. Os dois conversavam por horas, nunca discutiram. Silas acreditava ter achado no outro tudo que sempre quis, era a companhia perfeita, exceto a de si próprio, para todas as horas. E por causa de Raul, Silas passava muito menos tempo pensando e admirando a si mesmo.

Certo dia, Raul sugeriu que os dois, vez ou outra, saíssem para beber e jogar conversa fora com os outros rapazes da faculdade, afinal era o que todos faziam, como um rito obrigatório aos universitários. Surpreendentemente, Silas não só concordou, como animou-se com a idéia.

Silas tinha agora colegas. Nada que sequer chegasse perto do que era sua amizade com Raul, mas essa mínima socialização proporcionara-lhe algumas novas experiências interessantes, e tudo isso graças a ele: seu melhor amigo, sua alma irmã.

Raul mostrara a Silas um novo mundo, não só por compartilhar com ele o que antes só parecia possível na solidão, mas por aceitá-lo e carregá-lo em tantas aventuras.

Após a formatura, resolveram dividir o aluguel de um apartamento; como se davam tão bem, nada seria problema. Silas tinha o emprego de estagiário numa pequena empresa, enquanto Raul seguia os passos do pai na empresa da família. Trocavam sempre comentários e análises sobre o mercado, aconselhavam-se em decisões, divertiam-se com as histórias das secretárias que flertavam com Silas ou a estagiária que não tirava os olhos de Raul.

Chegaram até a sair para um encontro em quatro algumas vezes, mas chegavam sempre em casa divertindo-se da insegurança e infantilidade das moças, concluindo que nenhum dos dois relacionamentos daria certo. Riam e logo mudavam de assunto para algo mais interessante e relevante.

E cada dia era assim, compartilhado. As experiências de um eram dos dois. Silas não era mais Silas sem Raul, e vice-versa.

Tudo havia melhorado na vida de ambos: Silas agora era gerente do departamento, Raul tornara-se sócio da empresa de seu pai. Tão jovens e já tão estáveis. Silas acabara de receber um aumento e os dois combinaram de comemorar. Encontrariam-se no bar que sempre freqüentavam, no mesmo em que costumavam ir desde a época da faculdade.

Silas já esperava na mesa ao fundo do bar, uma caneca de cerveja pela metade enquanto matava o tempo da espera por Raul. Distraía-se olhando sem muita atenção os ocupantes das outras mesas: universitários rindo em alto volume; casais sorrindo e conversando baixinho; um grupo de moças que a toda hora ajeitavam os cabelos fitando-se no grande espelho atrás do balcão; homens já com a gravata folgada no pescoço, solitários nos banquinhos pequenos, atentos somente ao líquido em seus copos.

Silas estava tão distante que demorou a notar os gritos ao longe. Quando enfim percebeu que algo estava errado, a notícia já era trazida pelos funcionários chocados e alguns transeuntes invadindo o bar em busca de abrigo e consolo.

Uma tentativa de assalto fora o motivo da confusão. A vítima tentou reagir e uma arma foi disparada.

Silas ouviu o relato e seus joelhos falharam; caiu sentado de volta na cadeira sem ter-se dado conta de que levantara. Imaginou o sangue de Raul espalhando-se pela calçada. Sua visão ficou rubra, um vermelho tão vivo quanto seria o sangue de Raul. Sentiu um rastro quente nas faces e, olhando no espelho, passou os dedos brancos perto dos olhos. No espelho, seu rosto vermelho, suas mãos vermelhas tocaram duas lagrimas de sangue. Estranhou aquele rosto, aqueles olhos olhando os seus, aquelas mãos vermelhas, provavelmente mais velhas do que as suas... Aquele rosto também chorava, tanto sofrimento... Sentiu pena dele, e de si.

Com um sobressalto, de uma dor repentina no peito, encarou a imagem vermelha, viu os lábios vermelhos se abrirem em compasso com os seus e leu um nome desenhado no silencio. Não soube na hora de quem era, mas algo, talvez aquela dor, menos física do que ele sentia, lhe dizia que não importava saber.