Embarque [1] Inês

Enquanto esperava o 727, Inês teve um pensamento inesperado, uma lembrança, lembrou de quando tinha 17 anos e de como havia ficado feliz em dar seu primeiro beijo em Agenor. Os dois eram colegas de escola, estudavam em salas diferentes, porém na mesma série, mas quis o destino ou o universo que nunca caíssem na mesma sala. Agenor, um rapaz com uma pele tão reluzente que parecia ter engolido estrelas não era nem tão alto nem tão baixo, tinha um cabelo Black Power e vestia-se de uma maneira “descolada”. Inês já fazia mais o estilo menina recatada, não porque queria, mas porque a educação familiar a impunha; mantinha o cabelo preso em coque, mas que escondia uma bela juba black, que faria um par perfeito com Agenor, usava sempre saias abaixo do joelho, blusa abotoada até o pescoço... sim, era um tipo que Agenor sequer olharia na escola e ele nunca olhou mesmo. Se não fosse o esbarrão que ela deu nele na cantina da escola, tomou um banho de suco de tangerina, coitado. Agenor a olhou como se a tivesse notado pela primeira vez, e era. Já ela, olhou nos olhos daquele que sempre amou em silêncio e pode, pela primeira vez, saber qual a cor exata, castanhos.

Deste dia em diante os dois começaram a se encontrar nos corredores, na entrada, no intervalo... sempre às escondidas, afinal, os pais dela jamais permitiriam. Ela tentou inúmeras vezes levá-lo em casa para que pedisse sua mão a seu pai Eugênio, militar aposentado e carrancudo. Era um amor quase impossível, se não fosse a escola. Mas o mesmo destino que não os colocou na mesma sala sabia muito bem que um dia Agenor a deixaria no quarteirão acima da casa dela e por azar, no instante que Eugênio saia da padaria e na hora que ele lhe deu um beijo tímido no rosto. Agenor não sabia o que dizer, muito menos Inês, mas Eugênio sim, deu-lhe um soco na cara e levou Inês para casa puxando-a pelo braço. No dia seguinte, Agenor foi a casa dela e teve coragem de falar a seu pai suas pretensões. Creio não precisar estender muito a história da época de namoro até o casamento. Casaram-se ambos aos 19 anos e ficaram juntos até os 50, dois meses antes de Inês estar no ponto de ônibus a esperar o 727. O trajeto que o ônibus fazia, parava exatamente em frente ao cemitério. Naquele dia 05 de setembro, fazia dois meses que ele havia ido embora após um infarto fulminante enquanto os dois, sentados na varanda de casa, conversavam sobre momentos que viveram. No dia 05 de agosto, Inês também esteve ali naquele mesmo ponto, esperando o mesmo ônibus para ir para o mesmo lugar. E assim, chegou o 727, atrás dela, mais 4 passageiros se preparavam para entrar, a história deles, só eles mesmos sabiam.

Inês chega ao cemitério e ao chegar no túmulo de Agenor, retira as flores de agosto e coloca as de setembro, ato que será feito até o último dia da sua vida no mesmo dia, pegando o mesmo ônibus no mesmo ponto.

Inês não sabe como será a vida sem aquele que um dia escolheu amar. Sabe que precisa continuar, que a vida não para, mas que sozinha, tudo torna-se cada vez mais difícil. Os filhos criados, vivendo suas vidas, para ela só restou o vazio de não saber o que era sem ele. Talvez um dia percebesse que agora pode ser uma e não dois, mas ainda não estava preparada para saber. Só sabe que todo dia 05, pegará o 727 no mesmo ponto e descerá no mesmo lugar.

Revisão: Wesley Nóbrega

Elmo Férrer
Enviado por Elmo Férrer em 05/09/2022
Reeditado em 05/09/2022
Código do texto: T7599063
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