INDEPENDÊNCIA E MORTE

INDEPENDÊNCIA E MORTE

BETO MACHADO

A temperatura estava bem convidativa para curtir uma praia, depois dos cinco dias de trabalho. Sextou com todos os apetrechos climáticos necessários a um bom fim de semana, esperado pelos cariocas.

Havia quase uns trinta dias que o namorado de Angélica não visualizava nem uma mensagem dela no zap. Tanto que ela não considera mais aquele relacionamento como namoro.

Angélica, diante de amigos e colegas de trabalho, já demonstrava sua condição de soltinha e com o coração aberto para amar. Mas ela se esqueceu de combinar isso com Amilcar, seu “ex” namorado.

Não demorou muito tempo para os ouvidos de Amilcar receberem as notícias que ele jamais imaginaria ou gostaria de receber. Então ele se viu na obrigação de corrigir a rota do seu barco. Mesmo não se considerando um bom timoneiro, deu de mão no leme e partiu “mar” a dentro. Às Favas seu treinamento na academia de lutas marciais! Teria que encontrar, urgentemente, Angélica, para se retratar, com ela, das faltas, dos sumiços e sua desatenção aos atos da namorada.

Amilcar parte para o ataque. Tem que recuperar o tempo e o espaço perdidos. Vai esperar Angélica na porta do prédio onde ela trabalha. Ensaia algumas palavras que ela gostava de ouvir quando trocavam carícias, antes de entrarem nessa situação. O som do rádio do carro o irrita. Desliga. Seu celular toca. Não é Angélica. O treinador de lutas marciais pergunta se ele já está chegando.

___ Não. To resolvendo um probleminha. Não vou treinar hoje não.

___ Como assim? Amanhã tem luta valendo troca de faixa. Ta maluco?

___ Fala assim comigo não, seu merda... Quer saber? Quero mais saber dessa porra não. Foda-se! – desliga o aparelho.

Angélica reconhece o carro de Amilcar e fica estarrecida com a surpresa. A discussão com o treinador produz um descontrole emocional no “ex” namorado de Angélica, de tal modo que ele teve vontade de beber alguma bebida alcoólica.

A indecisão tomou conta da mente de Angélica. Vai ao encontro de Amilcar, ali diante dela? Ou fingiria não reconhecer o carro e seguiria com colegas de trabalho para o bar da esquina que os recebe todo fim de expediente? Pois foi isso que se sucedeu.

Mas o “macho alfa” não desiste, por nada, da fêmea escolhida. E o coração de Amilcar falou mais alto que o seu orgulho. Pra ele não importava se ela desdenhara sua presença à porta do trabalho. Ele já houvera desligado o rádio do carro, o telefone e desligaria qualquer coisa a mais que o aborrecesse. Menos a sua “posse afetiva”. Sim. Era assim que Amilcar entendia e acreditava que fosse o seu relacionamento com Angélica.

Angélica e seus colegas de trabalho entraram no bar e se aboletaram às mesas, de costume, reservadas para aquela turma; clientela cativa do bar. Andaram, aproximadamente, cem metros sem que ninguém olhasse pra trás, acatando o combinado com Angélica, que sentou-se, prudentemente, de frente para a porta de entrada. As paredes de vidro do estabelecimento facilitaram a todos, visualizarem a caminhada e a chegada de Amilcar. A estratégia era: assim que ele adentrasse ao recinto, todos bateriam palmas para ele.

Amilcar sentiu-se como um cão raivoso que recebe mimos e carinho de pessoas desconhecidas. Um sentimento estranho invadiu sua mente. A raiva produzida pelo desdém da mulher “posse”, virou outra coisa que ele não havia experimentado antes. Mudou de semblante, antes sisudo, quando Angélica se levanta e o convida para sentar-se ao lado dela. Assim ela conseguiu desmontar todos os maus pensamentos que aquele bruta-monte construíra dentro do carro.

___ Faça companhia a essa turma do bem. __ Angélica fala e puxa uma cadeira da mesa ao lado para Amilcar__ Gente, esse é Amilcar. Mesmo com essa cara de mal, também é gente do bem como nós. E, há um mês é meu ex... A rima não foi de propósito, viu?

Amilcar avermelhou o pescoço e o rosto mas não deu uma palavra se quer. Angélica achou que errara na dose. Puxou o braço do ex pra baixo e sentaram simultaneamente.

O garçom já conhecia as pedidas da turma. Só não conhecia Amilcar.

___ Ao seu dispor, senhor.

___ Estou só de passagem. Traz um vinho tinto e seco, por favor.

Conversas paralelas são comuns em grupos que freqüentam bares, principalmente depois do advento do telefone celular.

Angélica, tomada pela surpresa diante da expressão “por favor”, vinda da boca de Amilcar, achou que estava delirando ou num sonho. Mas logo se recuperou e lembrou da frase: “Os brutos também amam”.

Enfim, Amilcar pronuncia as primeiras palavras direcionadas a Angélica.

___ Me acompanha nesse vinho?

___ Não. Meu Orixá não me autoriza tomar vinho. Esqueceu? Poxa, um mês apenas é o suficiente para um homem esquecer de coisas importantes ocorridas num relacionamento?

¬¬¬___ Nunca me liguei nesse negócio de religião não. Quem manda na minha vontade sou eu... Cada um com o seu cada um. Mas eu preciso conversar com você... Não aqui.

___ Onde?

___ Sei lá... Onde você puder.

___ Ou onde eu quiser?

___ Pode ser.

___ Pois eu andei avaliando o nosso relacionamento e cheguei à conclusão que o melhor que você fez pra nós, foi se afastar de mim. Confesso que só percebi isso depois um certo tempo. A paixão nos cega e nos ensurdece. Mas depois que ela se desaparece, surgem dois outros sentimentos: o Amor e a Amizade.

___ Mas eu não quero conversar sobre isso aqui.

___ Você acabou de concordar que poderia ser onde eu quisesse.

___ Ando meio confuso...

___ Fazer confusão entre o sim e o não, é muito perigoso para quem dirige automóvel, heim.

___ Quando você ta perto dos seus amigos, eu não entendo quase nada do que você fala. O quê que tem a ver automóvel com sim e não?

___ Sinais de trânsito... Verde é sim. Vermelho é não. Ta claro?

___ Pô, essa você ganhou. Mas vamos procurar um lugar só pra nós. Que tal um motelzinho?

___ Nãnãnininão... Hoje é sexta feira. É um dia sagrado para minha religião. Esqueceu?

___ Pô... Cada religião que vocês têm... Pode encher a cara de cachaça mas não pode fazer sexo na sexta feira. Que doideira!

___ Vamos manter o nível que a gente vinha tendo?

___ Desculpa... Aloprei...

___ Entendo. Os homens são fracos no controle de qualquer abstinência.

___ Que porra é essa de abestanença? Ta me chamando de Besta?

___ Nada disso. Abster-se é se privar de fazer algo. Por exemplo: abster-se de fazer sexo.

___ Ta maluca?

___ Pois tem religiões que controlam e limitam essa atividade que faz parte da Natureza Humana.

___ Esse pouco tempo que a gente conversou aqui, você bebericando essa cerveja e eu engolindo esse vinho sem saborear, deu pra sentir e entender melhor aquilo que você falou: que o melhor que eu fiz pra nós foi eu me afastar de você.

___ Palmas pra você! Já está aprendendo a ouvir. Só entendemos bem aquilo que prestamos atenção e permitimos que entre na nossa mente. E você permitiu que a minha fala entrasse no seu íntimo, pelo jeito, fez efeito.

O modo sereno de falar de Angélica estraçalhou os planos de Amilcar, que era usar sua força bruta na fala, nos gestos e, se preciso, na violência física. Assumir a derrota em qualquer contenda, até então, não fizera parte do mundo dele; e essa já estava contabilizada. E qual seria o caminho a ser trilhado pela sua paixão, dali por diante? O do Amor seria muito difícil. O da Amizade lhe causaria muita dor de cabeça, devido a seu gênio ciumento e possessivo. O melhor seria aceitar que seus quatro pneus estão arriados e a procura de uma borracharia é o que ele deve fazer para chegar são e salvo em casa, depois de ter escolhido o dia errado para se encontrar com Angélica. Aquela sexta feira jamais será esquecida por Amilcar. Certificou-se que perdera a mulher que imaginava que fosse sua posse, brigou com seu treinador de lutas marciais, foi expulso da Academia por indisciplina... E teve que dirigir embriagado com o vinho que lhe deu dor de cabeça e sonolência.

A dor de cabeça começou assim que saíram do bar e Angélica rejeitou sua carona. A sonolência tomou conta do seu corpo assim que sentou ao volante. Não quis atender a sugestão de Angélica para deixar o carro ali e chamar um táxi.

Amilcar não tinha se relacionado com uma mulher independente antes de Angélica. Todas as anteriores eram do nível dele, tanto a personalidade quanto o nível cultural. Logo, a preponderância do machismo sobre as pretensões femininas eram nítidas nos relacionamentos de Amilcar. Angélica deu cabo a esse ciclo.

Ela só não esperava receber uma notícia tão trágica, ao chegar em casa. Seu telefone mostra a foto do carro de Amilcar num estado de perda total, depois de colidir com o pára choque de um caminhão da cervejaria produtora da bebida que deu prazer à Angélica e seus colegas de trabalho, há poucas horas, naquele mesmo bairro. As informações retalhadas davam conta que o motorista fora retirado das ferragens e levado para um hospital que ainda não se sabe qual é.

O desespero de Angélica somou-se ao sentimento de culpa que tomou conta da sua razão e da sua emoção. As lágrimas embaçaram seus olhos de modo tal que ela não conseguia ler as notificações expostas na tela do telefone.

A vizinhança conseguiu convencer Angélica a voltar pra casa e descansar o corpo e a mente. E ela foi. Ao chegar em casa, ela compreendeu que todos queriam lhe dizer da morte de seu “ex”. E, verdadeiramente, era aquilo mesmo. Amilcar estava morto. Mas o que isso influenciará na vida de Angélica, daqui pra frente? Ela se libertará do sentimento de culpa ou se enfiará num casulo com as cores da tristeza pro resto da vida? Essa resposta só o tempo nos dirá.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 06/09/2022
Código do texto: T7599942
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