O Cunhado

Para entender um pouco dessa história tão comum e previsível da relação de um cunhado com um irmão, criança, ciumento, é preciso iniciar a narrativa lá atrás. Serei o feliz narrador dessa história. Só muito tempo depois descobri o privilégio de ser o irmão da namorada do cunhado. Vamos voltar no tempo e nos encontrarmos numa cidadezinha pequena, bucólica cheia de conflitos entre moradores, muita falação e cheia de personagens instigantes. Comecemos por D Hosana cuja palavra na bíblia significa: “Salva-nos agora, ó Tu que habitas nas maiores alturas”. “Salva-nos, te imploramos”, ou “te imploro”.

Hosana, base dessa narrativa, era o nome mais que apropriado da Senhorinha para quem eu era encarregado de levar pão com manteiga e café, todas as noites. Sozinha, pobre, triste, magra, quase quebrando, nariz afilado, tez marrom, face enrugada, meio envergada, tipo bruxa do bem, uma pintura estragada pelo tempo. Lembro que ela mascava cravo da índia e exalava o cheiro de cravo por todos os poros. Vivia de cerzir roupas rasgadas, pelo uso ou pelo tempo, função importante em época de tecido caro, mas cujo pagamento era visto como ajuda e não como remuneração pelo trabalho executado com maestria. D Hosana vivia da ajuda da comunidade; não lembro de ninguém por perto, um irmão, sequer um primo distante, nada. Alguns moradores atendiam seu apelo, jamais verbalizado, pelo olhar, talvez. Dizem que a súplica do olhar vai fundo à alma.

- Corra, corra vá levar o pão de Hosana - recebia essa ordem, regularmente e impacientemente, todas as 6:00 horas da tarde. E lá se ia o narrador para a missão diária no ritmo do badalo do sino da igreja, chovesse ou fizesse sol. O mando autoritário me incomodava, mas ia feliz e vou explicar o motivo. Lá chegando era recebido com gentileza, não percebia qualquer enfado. O pão com café não era comido de imediato, parecia não estar nunca com fome o que, diga-se de passagem, me agradava muito. Entrava na sala exígua da casa com duas ou três cadeiras velhas, chão de terra batido; não se via resquícios do piso antigo, sentava quieto e ela, de imediato, se postava ao meu lado para contar estórias. Viajava com D Hosana por entre selvas e campos imensos, a cavalo, a pé ou em barcos que voavam sobre castelos levados por furacões para salvar, junto com rainhas, reis, bruxas e bruxos, gigantes e anões tendo todos em comum, a bondade na alma. Sorvia as palavras da contadora de estórias e sumia do mundo real por algumas meias horas sempre muito gratificado.

E o Cunhado? Onde entra nessa história? Vamos lá. De repente, não mais do que, de repente, sou destituído do meu cargo de entregador o qual é repassado, sem qualquer explicação, para minha irmã. Não havia alternativa a não ser aceitar. Percebia certa cumplicidade familiar com a mudança sem desconfiar dos motivos. Resolvi investigar. Ao final da tarde, ordem dada, a irmã, toda faceira e arrumada além do normal, com o pão e o café nas mãos, inicia sua trajetória até a casa da nossa D Hosana, descobri depois, cúmplice da trama engendrada pela irmã, para encontrar o, até então, desconhecido cunhado. Por trás dos arbustos do banco da praça que ficava em frente à casa pude ver com o coração saindo pela boca o encontro do casal.

De imediato me tomei de raiva pelo cunhado, ou por sentir ciúme da irmã, ou por ser ele, jurava de pé junto, o responsável pela minha destituição de entregador de pão e, como consequência, das estórias de D Hosana. Abro um parêntese para dizer que desconfio, até hoje, que D Hosana nunca esteve tão feliz em ser comparsa de um namoro; agora poderia mascar seu cravo da índia em paz.

A birra pelo cunhado, durou anos, tudo era feito para ignorá-lo ou para contrariá-lo. Algumas tentativas de aproximação não deram em nada. Ainda não era a hora. Não se insista com adolescente birrento. Nunca dá certo. O tempo passou até que, aos poucos, o gelo foi se quebrando e a aproximação, finalmente, se deu, felizmente, a tempo de perceber a grande pessoa que ele era e quanto tempo de convivência foi perdido. “Cunhado do latim cognātus, é o irmão de um dos cônjuges relativamente ao outro cônjuge, e vice-versa. Legalmente o cunhado é considerado parente por afinidade". Não nesse caso. Nosso cunhado foi cooptado pelos irmãos e se tornou um deles.

FCintra
Enviado por FCintra em 26/09/2022
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