JULGAMENTO

O cheiro acre da saudade, ontem era doce, amanhã não se sabe. Com o passar do tempo as lembranças dos aromas mudam porque a memória falha ou apreende outros pontos de vista sobre um mesmo tema que de agradável pode vir a converter-se em rançoso sobre a língua estupefata perante os verbos suaves e ocultos no fel das segundas intenções – ela refletia sobre isso enquanto percorria o largo e comprido corredor. Os olhos, sob o espesso vidro dos óculos de grau, lutavam contra o ímpeto de chorar e esforçavam-se por ignorar os flashes das câmeras fotográficas disparados em sua direção. Caminhava como se corresse, mas a saída parecia inalcançável. Os sons emitidos pelos passos pesados sobre o piso sujo daquele dia cinza, não soavam tão alto quanto as batidas do seu coração partido. Ela queria bradar o que estava alojado em seu peito, um grito que rasgasse as paredes do inconformismo e ressoasse por muito tempo, inclusive além de tudo o que a sua visão abrangia. No entanto, ela apenas atravessava o extenso corredor, dolorosamente calada. A dor tinha o poder de roubar-lhe a voz. As palavras amontoadas sobre as suas ideias, acotovelavam-se desesperadas como se precisassem fugir de um incêndio. Contudo, tal qual o fruto de uma ironia, era a frieza da dor que não as permitia escapar. Por trás daquele rosto inexpressivo havia um crescente caos: medo, amor, ódio e revolta fervilhavam em seu estômago, onde ainda ardia a acidez do café amargo que sorvera há algumas horas.

Em meio a algazarra, conseguia ver, mesmo que de uma longa distância, as lembranças das mãozinhas indefesas de seu único filho, os balões coloridos nas festas de aniversário de seu garotinho, os abraços afetuosos de seu pequeno príncipe, o menininho amável que um dia vivera dentro dela e que seria para sempre uma parte sua. Perguntava-se em que momento aquela criaturinha, sangue do seu sangue, convertera-se em alguém perigoso a ponto de ser chamado “monstro” por todas as pessoas. Talvez ela mesma fosse a culpada pelos atos hediondos de seu descendente – sua reflexão assim apontava. Mas, a sua memória não conseguia compreender quando o amor que ela ofertava, convertera-se em lição de assassinato. Ela não entendia qual fora a sua pior falha como mãe e ser humano. Ouvia a multidão furiosa gritar “assassino” a quem ela gostaria de devolver ao seu ventre em um gesto instintivo de proteção. Mais de vinte anos de cárcere: eternidade para o seu peito materno, tempo curto e injusto às vítimas. Se fosse em outra realidade, prisão perpétua ou pena de morte... Seu peito doeu ao imaginar a violência dentro dos presídios.

Há poucos metros da almejada porta de saída, deparou-se com um quadro de Jesus Cristo morto, depositado sobre o colo da Virgem Maria. Aquela pintura representava todas as mães cuja vida de seus filhos e filhas fora ceifada. O desejo de embalar o sono eterno de um ente tão querido... A força que uma mãe saca, sabe-se de onde... Todavia, ela não se sentia representada por aquele quadro. O seu filho era o algoz, não a vítima e provavelmente já havia conquistado um lugar cativo no inferno. Ao pensar isto baixou os olhos envergonhada e sentindo-se indigna de fitar aquela imagem sagrada, cruzou o limiar da porta com o peso do vazio de uma dor silenciosa, intransferível, inefável.

Onze mães estavam naquela sala. Mas, uma delas perdeu o direito de sê-la – este era o veredicto da sociedade. O olhar indiferente de seu filho perante os olhares dolorosos daquelas mulheres. Os olhos dela tentando apreender os fatos, mergulhados no sal provindo da incompreensão (que o seu peito tão bem podia compreender) e do eco perturbador da alheia apatia. Os gritos, o choro, a perda... De alguma maneira ela também era uma vítima, mas o mundo nunca perdoaria as suas lágrimas.