Um trem para as estrelas

A gurizada estava com os ouvidos atentos, e, quando o sinal tocou, um bando de louquinhos saiu como um enxame de abelhas pela porta da sala de aula e se juntou aos outros bandos, que saíam das outras salas, formando um mar de crianças correndo rumo à entrada principal da escola.

Fui o último a sair, pois me ofereci para ajudar a professora Cláudia com os livros de geografia, depois, também segui o caminho de casa com meus irmãos e alguns amigos. Lembro que íamos chutando pedras, estava muito calor e combinamos nos encontrar no campinho da velha pedreira, para um joguinho de bola e um mergulho no Rolante.

Minha família era composta por pai, mãe e oito filhos, sendo cinco meninos e três gurias. O pai trabalhava como turmeiro na prefeitura e a mãe era aquela pessoa maravilhosa, que mantinha a casa limpa e fazia uma comida cheirosa de dar água na boca.

Nossa família não era muito religiosa. Uma vez ou outra a gente vestia a melhor roupa para ir à igreja, isto acontecia quando o padre Antônio encontrava a mãe na rua e dava um puxão de orelhas nela. O pai não nos acompanhava, preferia ficar em casa para poder ouvir seus CDs de música e a predileta era Um trem para as estrelas, do Cazuza.

Naquela tarde eu e meus irmãos, juntamente com a gurizada de sempre, rumamos para o campo da pedreira para as partidas de futebol.

O Joni era o dono da bola e também era o juiz. As partidas foram se sucedendo. A gurizada brigava de se rolar no chão e o suor e a poeira formava uma camada fedorenta sobre a pele. Com os ânimos acirrados a solução foi uma correria em direção ao rio. O trampolim era uma enorme pedra e do alto dela cada um dava o seu salto para mergulhar e se exibir.

Assim, a tarde foi passando e já estava quase escurecendo, quando se ouviu o gemido do apito do trem saindo da estação lá longe. A gurizada saiu em debandada em direção à ponte da Casa de Pedra, por onde dava para ver o trem se dobrando no túnel, para passar sob a ponte e sumir em direção ao pôr do sol.

Era um momento mágico, estávamos agarrados nos ferros de sustentação da velha ponte e o trem se aproximava.

Não sei por que, mas o apito do trem soou como um aviso.

O que se sucedeu depois está tão vivo na minha memória, que posso descrever com riqueza de detalhes.

Parece que a nuvem negra da noite se interpôs na frente do sol, então vi meu irmão mais novo, o Carlos, subir como uma aranha para um patamar mais alto da ponte. Ele brincava de se largar e oscilava perigosamente o magro corpinho como um pêndulo de relógio. Ouviu-se um outro apito do trem mais perto. A fuligem da fumaça sufocava, quando o Carlos gritou lá de cima "Vou subir no trem para as estrelas"!

Depois, ele soltou as mãos e jogou o corpo bem para o alto e começou a descer em direção às águas barrentas do Rolante, que o engoliu num abraço carinhoso, porém mortal.

O maquinista acionou o apito e o trem sumiu na curva do horizonte.

Gritos. Choro. Desespero.

Levaram algumas horas para achar o corpo do Carlos retido na galhada de raízes da margem do rio.

Depois veio o velório, as condolências e a solidão dos dias seguintes.

A vida segue, era só o que diziam. Todo mundo estava muito preocupado com a dor do meu pai e da minha mãe.

Os anos passaram, o cabelo da minha mãe branqueou e nossas lembranças silenciaram, porém, por muito tempo, em noites de céu claro, eu olhava as estrelas para ver se o Carlos aparecia, minha intenção era perguntar para ele por que ele havia ido embora, deixando um leão rugindo dentro do meu peito, porém, ele nunca aparecia.

Ondina Martins
Enviado por Ondina Martins em 02/01/2023
Reeditado em 02/01/2023
Código do texto: T7685378
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