O Futuro e o Passado na Autodescoberta

Acorda, dorme e acorda sobressaltado da cama depois de mais uma péssima noite mal dormida. Inari, um jovem de 26 anos, morador do Japão, que há 5 noites não conseguia pegar no sono direito, revirando e pensando qual personalidade e memória coletiva ele iria escolher daqui um mês para a sua nova mente que estava vazia. Sim, o ano é 2189 e a humanidade vive em poucos espaços possíveis para sobrevivência. As mudanças climáticas deixaram o mundo inabitável pela maior parte do hemisfério Sul e das regiões equatorianas. Os países foram dessolados, houve uma grande mortandade de pessoas e as que sobreviveram fugiram para as últimas regiões que poderiam ainda ser habitadas, como o Japão e outros pouquíssimos lugares disponíveis no mundo. O país, graças a tecnologia que possuía, conseguiu criar uma biosfera com plantas geneticamente adaptadas ao intenso calor, construiu prédios resistentes a tempestades e nevascas e conseguiu reciclar oxigênio preservando as algas em estufas apropriadas, porém, o país estava mais lotado do que nunca, já que muitas pessoas que fugiram dos seus países se deslocaram para lá, dessa forma criando cidadãos marginalizados que sobreviviam à margem dos verdadeiros cidadãos do país, os japoneses. Pois tudo que restara da civilização humana eram reservados aos japoneses. Todo e qualquer estrangeiro era considerado um cidadão de segunda classe, geralmente, morando em subúrbios feito pelo o governo japonês e os empregos que eram recusados pelos japoneses eram ocupados pelos estrangeiros. Não havia chance de uma ascensão social. Tudo era controlado com medidas duras contra os forasteiros, já que o governo japonês se considerava caridoso por aceitá-los em seu território.

Olhando atentamente para a tela, Inari vê as memórias coletivas de todas as pessoas que viviam no Japão e indagava a si mesmo quem ele seria, daqui um mês. Qual personalidade estaria na moda? Como ele agradaria melhor aos outros? Que profissão ele iria escolher? Quais habilidades ele teria? Todas essas dúvidas de Inari se devia por que no ano de 2189 as pessoas tinham acesso a todas as memórias coletivas de todos os humanos que haviam vivido e que poderia ser adquirida por um determinado preço fazendo o download de qualquer memória de uma pessoa que estava viva ou morta. Assim o usuário poderia adquirir todas as lembranças, habilidades e conhecimento que aquela pessoa tinha, tudo estava disponível em um banco de dados onde era possível ter a opção de vários perfis diferentes. Esse era o sistema que predominava e todos o utilizavam. As pessoas desde a tenra idade utilizavam a memória e o conhecimento de outros. Para expandir o seu conhecimento e as suas experiências. As pessoas vibravam com isso, pois elas poderiam ser o que quisessem ser. Um ator famoso, um campeão de boxe, uma modelo de sucesso, um piloto de avião e até um excelente jogador de xadrez. Tudo, absolutamente tudo, estava disponível para as pessoas. Era um vício para a maioria dos jovens já que os seus sonhos poderiam ser realizados facilmente sem muito esforço. Porém havia um problema que vinha vindo junto com a engenhosa invenção. O sistema que gerava sonhos na realidade era acompanhado de uma maldição.

A máquina que permitia às pessoas armazenar qualquer conhecimento, habilidade, traço da personalidade para qualquer usuário se chamava Ten no Ishi, que em japonês significa a Vontade dos Céus, estava causando um grave problema de saúde coletiva. Os seus usuários só podiam acessar o sistema se pagasse uma assinatura anual do serviço. No começo da operação da Ten no Ishi o serviço prestado estava em teste inicial e muitas pessoas tiveram acesso de graça ao sistema. Logo depois do sucesso, houve a procura por muitas pessoas e a empresa começou a cobrar um preço bem mais caro para ter acesso, algo que tornou muitas pessoas desesperadas para continuar com serviço já que os conheceram de graça e agora deveriam pagar para continuar usufruindo do sistema. Porém, com o passar de quatro anos do surgimento de Ten no Ishi os usuários haviam triplicado desde o teste inicial, fazendo com que muitas pessoas vendessem o que tivessem para continuar utilizando o serviço e assim causando a falência de muitas pessoas.

Faltando somente o salário de mais um mês para acessar o sistema, Inari sofre com a angústia de perder o acesso ao Ten no Ishi já que o mesmo havia ficado desempregado a três meses atrás. Então, desesperado, faz a sua última escolha no sistema já que quem não pagava em dia ficava mais de 18 meses sem ter o acesso ao Ten no Ishi, pois o pagamento era feito por meio de uma assinatura de 24 meses. Uma jogada da empresa para deixar os seus usuários mais dependentes do que já estavam. Inari para em frente a máquina, pesquisa distraidamente os perfis de quem ele poderia ser até que um desperta o seu interesse. Era um perfil de um russo, major, piloto de caça, estrategista do exército, engenheiro formado pela academia militar, especialista em tiros de longo alcance que tinha vivido em 1985 e lutado na guerra do Afeganistão. O nome do russo era Bogdan Petrov que havia morrido em batalha em 1987 e que tinha recebido uma medalha por bravura um ano antes de sua morte por ter salvo os seus companheiros de um campo de prisioneiros. Sem pensar muito Inari escolheu o perfil de Bogdan para se tornar. Ele poderia ter as suas memórias, as suas habilidades, os seus conhecimentos e tudo mais quem ele foi por três meses. E assim o jovem escolheu o perfil do russo para se tornar.

Ficava a critério do usuário se ele iria querer mudar o seu nome de identidade ou mesmo seu perfil no cadastro único que o governo mantinha de todos os seus cidadãos dentro desses três meses ou não. Porém, em todo o tempo que Inari usava o sistema Ten no Ishi ele nunca havia mudado o seu nome original, mas como ele sabia que iria ficar um bom tempo sem o uso da máquina ele decidiu mudar o seu nome e o renomear de Bogdan Petrov, pois sentiu um reconhecimento que não sentira com nenhum outro perfil que já viveu. Nos primeiros dias Inari acessou todas as lembranças que Bogdan tinha em vida. Conheceu a sua infância dura nos montes Urais onde ele caçava cervo com seu avô, conheceu as perdas sofridas pelo o jovem russo quando a sua família acusada de contravenção foi presa e assassinada pelo o regime soviético e como ele conseguiu ascender como um excelente soldado no mesmo exército que dizimou a sua família. Relembrou todas as batalhas vividas no Afeganistão e como elas foram brutais, conheceu os traumas e os dilemas que Bogdan vivia de aniquilar todo o exército soviético que tinha dizimado a sua família ou permanecer fiel aos preceitos de fidelidade do exército. Descobriu o lado carismático que Bogdan possuía e como ele era admirado pelos os homens que comandavam. Toda aquela história era fascinante para Inari, um jovem de saúde frágil, franzino e tímido que mesmo que tivesse mil vidas não iria ter uma vida tão instigante e heróica como a de Bogdan Petrov.

Deitado numa cama com os olhos para o teto Inari se delicia com todas as lembranças vividas pelo o soldado russo, tudo era graças aos implantes neurológicos implantados no cérebro do usuário que era bem comum que todas as pessoas tivessem. Lá fora o Japão frenético tentava ser um último refúgio da humanidade sobrevivente, porém para Inari nada importava, não tinha preocupação em ter um emprego melhor, em ter uma carreira consolidada ou ter uma linda esposa para ele aqueles desejos comuns haviam morrido depois que conhecera a Ten no Ishi e o que mais ele gostava de toda aquela tecnologia era conhecer a vida das pessoas que haviam ali disponível. Durante três meses vivendo as memórias de Bogdan e conhecendo as suas habilidades fez com que ele pensasse que sua vida era irrelevante, mesquinha, fútil, um desperdício de um homem que a sua família havia sustentado por vinte e quatro anos desde que decidiu morar sozinho. Inari havia vasculhado todas as lembranças de Bogdan e se sentia tão íntimo dele que no final dos três meses foi difícil ele dar um adeus final. Inari se despediu daquele que tinha sido a sua maior experiência de um perfil no Ten no Ishi, num dos mais nobres homens que havia conhecido. Quando chegou o fim da experiência com esse perfil, Inari passou duas semanas de melancolia.

Falido, sem emprego e a ponto de ser despejado pelo dono do quarto que morava, Inari pensou por um momento e refletiu.

----- Afinal, quem eu sou? O que eu estou fazendo com minha vida?

Essas foram as perguntas que indagaram o jovem japonês por dias e tiraram o seu sono por muitas noites seguidas, para ele que sempre se escondera nas sombras de uma família super protetora que o sufocava com tanto cuidado pela sua saúde frágil, achava que não tinha vivido uma infância e nem mesmo a juventude. E depois de passar três anos da vida vivendo a memória dos outros com o sistema ele havia se perdido por completo. Não sabia quem era e nem lembrava quem foi. E essa dúvida o perturbou ao ponto de procurar ajuda. Então acessou os seus implantes neurais que tinha acesso a todo o conteúdo que existia na internet, uma internet que não era acessada por meio de um dispositivo como um computador, mas sim graças aos chips que haviam sido implantados em sua cabeça. O nome dessa tecnologia era Neuranet. Um aglomerado imenso de informações, de imagens, de arquivos e de dados que nenhum cérebro humano poderia conceber o tamanho que havia. A Neuranet era quase onipresente na vida de todos, ela estava nas suas casas, nos seus trabalhos, nos seus veículos e também nas suas mentes era quase uma espécie de deus que podia ser acessada quando quisesse.

Tendo acesso a todos esses dados, Inari recordou toda sua vida que havia sido gravada por meio dos implantes. Nas imagens e vídeos ele pôde assistir toda a sua vida e para ele tudo havia sido sem sentido, infeliz e sem significado. Ele não se sentia satisfeito como quando estava com as lembranças vividas de Bogdan. Dia e noite ele relembrava as memórias do soldado russo que voltavam a sua mente como fantasma para assombrá-lo e desejar relembrar tudo novamente, mas não podia já que havia sido cancelado o acesso ao sistema e por isso ele tinha vagas lembranças daquilo que viveu e ele teria que esperar dezoito meses para retornar, claro se tivesse dinheiro para pagar, algo que estava difícil já que o mesmo tinha sido demitido.

Dessa forma, Inari pesquisou, consultou e procurou em textos, sites, artigos e todas as informações disponíveis que havia na Neuranet em busca de se encontrar como indivíduo. Procurou em especialistas, na tecnologia e no esoterismo se compreender, mas tudo fora em vão. Inari sem saber havia entrado em uma crise existencial, onde se perdera por completo em uma longa noite escura de descontentamento não conhecia sequer da sua essência e permaneceu nessa aflição por dois meses seguidos.

Até que em uma manhã acordou e teve a necessidade de ir comprar comida no mercantil. Ao abrir a porta, Inari sentiu o brilho do sol em seus olhos que o irritou rapidamente. Fazia muito tempo que não saia de casa, ele havia se trancado no quarto apenas se lastimando e remoendo os seus problemas. Caminhando pelas ruas agitadas, entra no mercantil, compra os seus mantimentos e sai apressado em direção a casa como alguém que estava fugindo do desconhecido. E acidentalmente esbarra em um homem que cai a sua frente levando uma pilha de livros velhos, Inari imediatamente põe suas sacolas no chão e ajuda o homem a se levantar. O homem era um senhor de meia idade chamado Nassor um homem negro vindo do Quênia que andava com um casaco cor de mostarda e com vários livros na mão. Nassor agradeceu a Inari pela ajuda e se desculpou pelo incidente, já que no Japão de 2189 como dito, só quem era cidadão de primeira classe era o povo que havia nascido no Japão sendo relegados a todos o título de cidadão de segunda classe. Inari também se desculpou com o homem, afinal fora ele que tinha esbarrado, mas algo despertou o interesse de Inari. O que era aquilo que esse senhor levava. Então curioso ele pergunta:

----- Que objeto é esse que o senhor leva consigo?

Nassor olhou bem para Inari e percebeu a sua cara abatida de um sentimento pertinente e perturbador que o incomodava. E respondeu.

----- Isso meu rapaz, são livros com eles eu consigo ler e obter o conhecimento que eu desejo. Eles são muito raros já que falam de um grupo de intelectuais que viveram há mais 2500 anos atrás em um lugar chamado Grécia.

Ainda desconfiado, Inari pegou o livro das mãos de Nassor e começou a folhear e viu que realmente tinham palavras escritas naquelas frágeis folhas que pareciam que iriam se desintegrar a qualquer momento. Observou nomes que nunca jamais ouvira falar como Tales de Mileto, Anaximandro, Erastóstenes, Xenofonte, Apolônio, Aristóteles, Sócrates e por fim Platão. Para ele todos eram nomes estranhos e desconhecidos. Nassor o olhou e perguntou se ele queria algum daqueles livros e Inari de imediato o recusou. Achava tudo aquilo arcaico e obsoleto e não sabia o que iria fazer com aquilo. Deu uma olhada novamente em Nassor e percebeu que o homem se vestia como um maltrapilho. Nassor vendo que ele como um cidadão de segunda classe poderia ser enquadrado facilmente por importunar um cidadão nativo, pede desculpas mais uma vez e insiste para Inari escolher qual daqueles ele queria levar e diz com uma voz rouca:

------ Escolha ao menos um da sua preferência eu tenho certeza que todo o conhecimento que você adquirir lhe será útil um dia.

Inari sem querer prolongar a conversa com aquele sujeito sente um pouco de pena de Nassor aceita as suas desculpas e escolhe o livro cujo autor achou o nome mais estranho, Sócrates. Nassor admirado com a escolha do jovem rapaz fala:

----- Você fez uma boa escolha, esse livro não só traz conhecimento, mas o ajuda a descobrir quem você é.

E logo depois sai caminhando em direção ao final da rua. Aquelas palavras foram como uma flecha que acerta o alvo na mente de Inari. Como aquele homem desconhecido sabia exatamente o que eu sentia. Pensou Inari se apressando para chegar em casa. Quando chegou em casa abriu o pequeno livro e começou a lê-lo, porém Inari já tinha ouvido falar em livros quando criança e os mais velhos diziam como eles eram magníficos e uma invenção antiga. Abriu o livro, no entanto ele começou a ler as páginas da direita para esquerda, leu e não entendia nada, pois a história não tinha sentido para ele. Consternado com aquela situação não imaginava que uma invenção tão antiga seria tão difícil de dominar como imaginava, então pesquisou na Neuranet e obteve a informação que os livros ocidentais começam da esquerda para direita e não da direita para esquerda como aqueles que tinham no Japão, um equívoco que depois que descobriu, se achou ridículo.

No começo ele achou os ensinamentos muito simplistas e fora do tempo em que ele vivia, porém algo despertou o seu interesse quando Sócrates fala sobre o autoconhecimento e a necessidade de o tempo todo você está preparado para os desafios do mundo, para o filósofo você não pode enfrentar os outros sem dominar aquele quem você é. Os seus impulsos, seus medos, seus sentimentos e suas ambições devem primeiro serem controlados para que você não seja dominado pela ânsia do seu espírito e só quem tem capacidade de controlar é quem usa a racionalidade e a razão como princípios da vida. A lição deixada pelo antigo filósofo grego era que a autodescoberta só era possível através da vontade genuína de se descortinar, sem medo do que vai encontrar, ou seja, que devemos nos ocupar menos com as coisas fúteis ao nosso redor como riqueza, fama ou poder e passarmos nos ocupar com nós mesmos. Afinal de contas não há melhora sem esforço e não há esforço sem a verdade é esse ato de conhecimento, capaz de promover nosso autoconhecimento. Conhecer a mim mesmo para saber como modificar minha relação comigo mesmo, com os outros e com o mundo. Depois de ler as últimas linhas daquele pequeno livro, Inari ficou maravilhado com tamanho conhecimento que jamais iria pensar em encontrar em um livro tão singelo que fora escrito há mais de 2500 anos atrás. Então tudo aquilo era o que ele precisava. Ele tinha como missão desde aquele dia de se conhecer, de se avaliar, de desvendar suas habilidades e o mais importante de enfrentar os medos que assombravam a sua mente constantemente era esse o seu novo significado, essa era sua ressignificação na vida. Então decididamente olha pela última vez para Ten no Ishi e o desliga. Encerrando uma era onde ele não iria viver outras vidas e não iria conhecer a mente de outras pessoas, mas sim iria prestar atenção em si mesmo e correr atrás de seus objetivos que ele havia enterrado no canto sombrio da sua mente.

Inari estava decidido a ser um novo homem. Passando-se seis meses desde que ele descobriu o conhecimento valioso de Sócrates que guiava a sua vida ele decide fazer uma homenagem a sua nova fase da vida e escreve em cima do portal de sua sala em seu apartamento a frase que o inspirou a mudar, a frase icônica de Sócrates que ele leva agora para a vida inteira “Conheça-te a ti mesmo e conhecerás o mundo”.

Davi Freitas - 20/01/2023

Kaynne
Enviado por Kaynne em 21/01/2023
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