GRANDES HOMENS NÃO CHORAM

Sua família, numerosa, mantinha desde sempre o hábito de reunir-se uma vez por semana. Ele até gostava daquilo, mas seu coração sentia-se apertado quando as pessoas cruzavam os olhares enquanto falavam. Naquelas circunstâncias, ele sentia-se frágil, mas por um condicionamento antigo, não queria demonstrar. Durante seus noventa e sete anos de vida, recentemente celebrados, nunca foi visto chorando. Sentia-se orgulhoso disso e não queria que agora, no fim de sua vida (que os familiares diziam “nunca chegará, pois o senhor está cada vez mais forte”) uma lágrima estragasse tudo.

No fundo, algo lhe dizia que era besteira pensar aquilo, que chorar não diminui ninguém e tão pouco indica algo negativo sobre o caráter da pessoa. Mas ao mesmo tempo ele sentia que sua vida dependia de sua firmeza, de sua auto-infringida frieza, a qual foi fundamental no momento mais crucial de sua existência. E sabia também que ninguém entenderia isso.

Aliás, seu passado mantinha-se em segredo. O motivo de a sua frieza ter sido tão necessária era algo que ele guardava no cofre mais seguro e ao mesmo tempo mais frágil que existe: seu coração. Sentia orgulho de sua história e suspirava com saudades daqueles tempos, e sentia ainda mais falta da sua frieza daqueles tempos. Ele agora ainda era frio (adorava esse adjetivo!), mas tinha plena convicção de que passava longe da frieza daqueles tempos.

Não era, entretanto, uma frieza desprovida de sentimento. A frieza, para ele, era um sentimento. Um sentimento bom, que leva as pessoas a fazerem coisas boas, ainda que muitos não entendam assim. Essa era uma de suas crenças mais fortes.

E agora, ali, sentado na sua velha poltrona que ele trazia daquela época, o velho observa as crianças brincando à sua frente. Ele as vê simulando uma vida fictícia junto aos seus brinquedos, imaginando viver algo que elas não vivem. Ele, ao contrário, desde a época em que tinha a idade daqueles “pequeninos” sempre viveu tudo o que quis. Sentiu em suas mãos o calor da vida, vida sua e vida de outros. Sentiu e viveu.... e agora, sentado ali, sente falta de tudo aquilo. Mas sente algo mais. E uma lágrima tenta cair, pela primeira vez em sua vida. Pela primeira vez, uma lágrima tenta manchar seu rosto.

Ele a segura. Afinal, grandes homens não choram.

Grandes homens.... ele sempre se considerou um grande homem, pelo que era e pelo que fizera. Sabia que prestou um grande serviço à humanidade (“que exagero ser tão egocêntrico”, poderiam pensar algumas pessoas, nos dias de hoje), ainda que após aquela época, poucos considerassem o que ele fez como sendo um grande serviço. Mas ele não tinha dúvidas quanto ao seu valor. E não duvidava que o fato de nunca haver derrubado uma única lágrima ajudou, e muito, a realizar as tarefas.

Um leve sorriso surge em seu rosto. Ele sorri ao ver um de seus bisnetos brincando à sua frente. Sorri pela alegria da criança, e sorri ao imaginar que aquela criança carrega algo dele dentro de si. Ele se considera velho demais para querer ensinar algo a essa criança. Mas fica feliz ao vê-la. E de novo, uma lágrima tenta sair de seus olhos ao lembrar-se daquele período, daquela época. Ele, então, levanta-se e vai para o seu quarto. Quer ficar sozinho, na companhia de suas memórias.

Sentado na cama, ele apanha uma folha de papel e um lápis. Olha para o papel branco à sua frente e lembra-se daquela época e da vida vazia daquelas pessoas que tanto preencheram a sua vida e impediram-na de ser ela própria vazia. Busca lembra-se de cada detalhe enquanto o lápis desliza lentamente sobre o papel. Ele observa o movimento do lápis, mas é como se sua mão se movesse sozinha, independente de sua vontade. Uma força maior o movimenta naquela atividade de buscar vida onde ela não mais está. Buscar vida no passado morto, vivo somente para ele. E lentamente ele vai visualizando aqueles rostos, aqueles corpos, aquelas vidas...... e aquelas lágrimas. Lágrimas de pequenos homens, pequenos em todos os sentidos. As lágrimas daqueles pequenos homens corriam livremente e eles não tinham a menor preocupação em tentar contê-las. Naquela época, ele também não tinha preocupação em tentar conter as suas, pois elas não existiam. Grandes homens não choram, era o que ele sempre dizia E sempre achou que a turbulência das lágrimas daqueles pequenos homens era mais um indicativo da inferioridade deles e da razão indiscutível de suas atitudes de grande homem que era.

As lágrimas deles eram tantas.... daria para afogar um grande homem, se ele não fosse realmente grande e não estivesse acima de tudo aquilo.

E absorto nesses pensamentos, ele prossegue desenhando. Mas por um instante, parou de olhar para o papel e começou a olhar para o alto enquanto desenhava, como se estivesse buscando algo.

Um perdão, talvez? Mas perdão para quê? Ele não achava que tinha feito nada de errado. Ele sabia que estava certo em tudo. O fato dele nunca haver derrubado uma única lágrima provava isso.

Estranho sentimento aquele.... algo novo. Algo incontrolável, intenso demais.... e os riscos que o grande homem faz na folha de papel começam a ser traçados de maneira frenética. E enquanto ele desenha, as lágrimas parecem que vão romper sua barreira, a barreira erguida por tantos anos em que ele foi um grande homem. Mas ele ainda segura. Não derrubará uma única lágrima, ainda mais naquele momento.

Momento em que, ao olhar para o papel, percebe que o desenho toma uma forma bem definida, ainda que ele não tivesse a intenção de desenhar aquilo. Mas está desenhando, inexplicavelmente. É uma cena de seu passado, um passado muito distante, mas que sempre o acompanhou. Um passado que aparece nítido em sua cabeça sempre que ele respira.

E agora, enquanto desenha e olha para o alto, segurando as malditas lágrimas, ele se lembra daquelas pessoas. Muitas crianças, mas também vários adultos; mulheres, idosos e doentes, gente que naquela época ele desprezava. Não eram pessoas, para ele. Eram restos de uma escória que era necessário eliminar. Durante muitos anos ele pensou assim e fez seu trabalho com muita dedicação. Eram os anos de guerra. Uma guerra travada entre quase todo o mundo, envolvendo governos, exércitos, mas também envolvendo almas; almas de gente como ele, que cresceu sabendo que havia várias espécies que era necessário extirpar do mundo; mas também havia as almas dos seres que, sabendo que estavam sendo extirpados do mundo, choravam ao ver grandes homens como ele. Choravam pedindo clemência ao grande homem que nunca chorara. Naquela época, ele não sentia nenhuma vontade de chorar. Ao contrário, desprezava ainda mais aqueles seres tidos como inferiores por causa das lágrimas inúteis que eles derramavam.

Mas agora, sentado ali, na cama, enquanto seus familiares festejam a harmonia na mesa de almoço, ele sente vontade de chorar. Seus familiares, que não existiam até o ano em que ele fugiu do seu país para escapar daquele que ele julga ser a maior injustiça da história (algo que ficou registrado como “Tribunal de Nuremberg”), não sabem de nada. Ele nunca quis contar sua real história para sua esposa, filhos, netos, bisnetos....

Agora, quase sessenta anos depois daquilo tudo, as coisas parecem ter um peso que nunca antes haviam tido. Ele sente algo inexplicável dentro de si. Quer parar de desenhar e de pensar naquilo, mas não consegue. Então, ele olha para a folha de papel em seu colo e vê, nítida, a imagem de uma mulher carregando uma criança. Uma criança chorosa, quase tão chorosa quanto sua mãe, a caminho de seu destino. Um destino que seus líderes haviam traçado para as pessoas daqueles povos. Para gentes que ele aprendeu desde sempre que eram inferiores. E como seres inferiores, eles choravam, e choravam muito.

E ele, um grande homem, já não estava conseguindo segurar as lágrimas. As primeiras lágrimas derrubadas em noventa e sete anos de vida. Será que agora, após tanto tempo, ele iria chorar? Pior ainda: será que iria dar para as pessoas que o observavam naquele pedaço de papel desenhado, o prazer de vê-lo chorar?

Não estava disposto a isso. E assim, com um certo alívio, foi fechando os olhos e deitando-se na cama. Sentia a vida saindo de seu corpo.

Quando não escutou mais o barulho de sua família festejando na mesa de almoço, derrubou o lápis no chão. O papel desenhado permaneceu em seu colo. E de seus olhos, escorreu um líquido. Não era lágrima. Não a lágrima que “seres inferiores” derrubam. Esse grande homem finalmente derramou algo pelos olhos, mas não lágrimas.

II

Aquela reunião familiar dominical terminou em lágrimas. Não as lágrimas do grande homem, mas sim de pessoas que não eram tão grandes. Seus familiares choraram muito quando encontraram o grande homem morto deitado na cama. Como não eram tão grandes assim, sentiram muita tristeza e choraram. Uma tristeza imensa, pois seus filhos e filhas, genros, noras, netos e bisnetos, amavam-no muito. Sentiram muita tristeza a ponto de não se preocuparem em prestar atenção no desenho que jazia no colo do grande homem. O desenho de uma mulher e de uma criança que, abraçados, sorriam. Um desenho feito pelo grande homem que, no auge do seu desespero em conter as lágrimas, coloriu o papel com o sangue escorrido de seus olhos. Um sangue que não eram lágrimas, pois lágrimas são fruto de choro.

E grandes homens não choram.