"Amor à Primeira Vista ou Uma Visita Importante" = Histórias de Amor Safado=

- Serão só dois ou três dias, meu amigo. Te juro. Pô, me quebra essa, amigo...

- Sinceramente, meu caro, não tenho a menor vontade de lhe prestar esse favor. Vai ser uma coisa estranha, meio chata mesmo. Sua irmã é uma moça, meu apartamento é pequeno, de solteiro, ela não terá o menor conforto nele. E, além disso, tem a minha noiva, cara. O que é que ela vai pensar disso?

- Sua noiva não precisa ficar sabendo. Será só por uns dois ou três dias, se tanto. Minha tia volta pra casa, minha irmã vai pra casa dela, e você fica livre logo. O que eu não posso é pagar hotel pra ela. Você sabe que moro em uma república só de homens. Não há jeito de eu levá-la pra lá. Afinal de contas você me deve um favor.

- Um favorzão imenso...Empurrou meu carro e ganhou uma carona até a casa do cacete, na esquina do fim do mundo. Não te devo merda nenhuma. E se for partir pra essa argumentação, esqueça o favor que está me pedindo.

- Eu nunca te emprestei dinheiro?

- Nunca. Aliás, por falar nisso, nem ao menos me pagou o que lhe emprestei no mês passado.

- Pô, amigo! Por favor, não mude de assunto...Quebra essa pra mim, cara. Minha irmã é uma pessoinha jóia, tipo da moça bacana, simpática, prestativa mesmo.

- Dois dias?

- Três, no máximo.

- Olha lá, amigo. Você sabe que sou um cara meio esquentado e que não gosto de entrar em frias. Vamos falar o português claro: se sua irmã me encher o saco eu boto ela pra rua.

- Pode botar. Você vai ver que é gente fina.

- Tenho a maior prevenção com essa expressão. O maior medo de “gente fina”. O Carandirú está cheio de gente fina, finíssima. Mas manda a tal irmã. Depois das onze devo estar em casa.

- E minha irmã vai fazer o que até as onze da noite?

- Pode ficar jogando pedra em ônibus na avenida Paulista. Boa noite.

Às cinco pra uma da madrugada, já esquecido da irmã do amigo e no mais profundo sono, tocaram a campainha com insistência. Daquele jeito maldito de quem põe o dedo em uma campainha e esquece onde ele está. Levantei puto da vida e abri a porta com violência:

- Que merda é essa? Isso é jeito de tocar na casa dos outros?

- Desculpe, moço. Meu irmão me disse que você chegava tarde em casa e eu toquei bastante pra ver se me ouvia.

- Onde eu estivesse? Do jeito que você tocou dava pra ouvir até no inferno. Entre logo, moça.

- Com licença.

- Toda. Vai entrar ou quer a licença por escrito?

- Com licença...

- Mais um “com licença” e eu fecho a porta com você do lado de fora. Quer tomar um café?

- Tem?

- Não. Perguntei só por brincadeira. Sou o cara mais bem humorado do mundo quando me acordam com a campainha aos berros. Está ali na garrafa térmica.

- O que?

Ai, meu saco!

- A água, o pó e o açúcar. Estão os três dentro da garrafa térmica, bem quentinhos e juntinhos. Sirva-se.

- Com licença.

- Toda.

A moça tomou o café em micro golinhos irritantes, como se fosse sua última tarefa na terra, enquanto seus olhos me fitavam examinadoramente.

- Quer ir ao banheiro? Antes que me pergunte, tem também.

- Onde fica?

- Ande por todos os cômodos e logo o encontrará. Tem uma louça branca no meio dele e outra colada na parede. Branca também.

Naquela merdica de apartamento, apetêzinho, melhor dizendo, ela me perguntar onde ficava o banheiro...Abusando de meu excelente humor daquele momento.

Muito tempo depois ela saiu do banheiro. Imaginei que devia ter evacuado parafusos, depois tomado um super banho, escovado os dentes, cortado as unhas, alisado os cabelos, escrito cartas pra mãe, posto em dia a leitura, mas ela foi delicada comigo:

- Você não vai precisar usar o banheiro antes de eu tomar um banho?

- Não, moça. Eu já usei o banheiro por hoje. Estava esperando pra lhe mostrar onde você vai dormir.

- Onde é que eu vou dormir?

- Já vou lhe mostrar, não acabei de dizer?

- Onde é?

Merecia um tapa na moleira...

- Aqui, ao lado da minha cama. Coloquei esse colchonete no chão. Como você está de passagem, ainda é magra e levinha, não sentirá muito o chão do quarto.

- Não dá pra gente trocar? Eu fico na cama e você no chão?

- Você está brincando com a minha cara, menina? Você acha que eu vou dormir nessa merda de colchonete?

- Mas eu posso, não é?

- De quem é a casa?

- Que casa?

- Essa.

- Isso é apartamento, não é casa.

- Você entendeu. Se quiser dormir no colchonete, tudo bem. Se não quiser, tem o sofá.

- Aquela coisa deformada lá da sala?

- Se não quiser o sofá, temos a porta da rua, que é a serventia da casa.

- E eu não posso dormir na sua cama com você? Você ronca muito?

- Como é que eu vou saber? Moro sozinho. Porquê?

- Detesto gente que ronca. Vamos combinar assim, se você roncar muito eu te acordo e você vai dormir na sala.

- Vamos combinar um pouco diferente: se eu roncar muito, você me acorda, eu abro a janela e te jogo na rua.

- Mas aqui não é o sexto andar?

- É, mas no caminho você acorda e quando chegar lá embaixo aproveita o embalo e vai pra casa da sua tia.

- Que tia?

- Seu irmão me disse que sua tia estava pra chegar e você ficaria na casa dela.

- Não estou sabendo de tia nenhuma. Acho que ele te enrolou.

- Amanhã mesmo eu te devolvo pra ele, sem problema algum.

- O pior é que vai ter problema sim. Eu não tenho a menor idéia de onde ele mora.

- Eu me encontro com ele na empresa e acerto as contas.

- Ele pediu demissão e se mandou de São Paulo.

- Então eu te corto em pedaços, ponho em uma mala, e te mando de volta pros seus pais.

- Morreram faz tempo.

Àquela altura meu mau humor já se fora havia muito tempo. Estava me divertindo com a moça bobinha, meio lesa, e mesmo assim simpática em seu jeitinho atrevido e confiado.

- Vamos dormir, xaropinha. Você se deita pra baixo e eu pra cima.

- Gosto mais de dormir pra cima, com a cabeça na cabeceira.

- Menina, se alguém disser que você é folgada, não acredita não. Vai, deite-se na cabeceira e boa noite.

- Você dorme pelado?

- Porquê? Vai exigir que eu use pijama? Durmo de cueca.

- É que eu durmo pelada. Não agüento dormir com roupa nenhuma. Não acenda a luz nem me olhe enquanto me preparo para deitar, tá?

- Tá. Você não acha que deveria fazer um pouco de cerimônia na casa dos outros?

- É que você é tão legal que logo me senti à vontade em sua casa, digo, seu apartamento.

- Se eu pudesse adivinhar teria te recebido a cacetadas.

- Que nada...Você é tão legalzinho...Feche os olhos que eu vou tirar a roupa.

- Apague a luz, pô...

- Tenho pavor de escuridão total. Ligue um abajur pra mim, vai.

- E eu lá tenho um treco desses, moça? Eu só sei dormir no escuro total.

- Começamos bem nosso relacionamento...

-Que relacionamento o cacete! Eu estou noivo e não tenho nenhum relacionamento com você.

- É que você não me conhece direito ainda. Não dou uma semana pra você estar doidinho por mim.

Tive que rir e acabei rindo muito. Aquela moça era um sarro mesmo. Atrevida, confiada, entrona, cara de pau, folgada, mas ao mesmo tempo com aquele jeitinho que dá vontade de a gente pegar, colocar no colo e explicar com carinho que as coisas não são como ela pensava em sua cabecinha bonitinha.

- Vou deixar a luz acesa só meia hora. Se você dormir, muito bem. Se não dormir vai ficar no escuro.

Meia hora depois apaguei a luz e ela se encolheu na cama.

Mais ou menos uma hora e meia depois, acordei com a respiração dela em minha nuca. Mexi um dos braços e senti o contato de sua pele.

- Eu sou virgem. Não se engrace comigo.

- Então desgruda que eu não sou de ferro.

- Você pode muito bem se comportar como um cavalheiro. Vira pra lá, dorme e esquece que estou aqui.

- Então vista uma roupa.

- Aí eu não durmo. Não consigo dormir vestida.

- Cacete!! Você está na minha cama, colada comigo, pelada, e quer que eu simplesmente me vire pro lado e durma. É possível uma coisa dessas?

- E você quer o que? Que eu perca minha virgindade só porquê você é um sem vergonha?

- Sem vergonha é a mãe. Vai pro sofá, cacete.,

- Se eu deitar naquela porcaria vou perder a virgindade com uma daquelas molas soltas.

- Uma estréia inesquecível, com certeza.

Sacaneado, joguei a coberta para o lado, fui ao banheiro e um tempo depois voltei aliviado.

- O que é que você foi fazer no banheiro?

- Cagar. O que é que você tem com isso?

- Aposto que foi fazer sacanagem com a mão, seu bobo.

- Pô, mas tu és intrometida pra cacete. Cuida da tua virgindade e vai dormir.

- O que você fez sozinho eu podia ter feito pra você. Era só me pedir. Isso não tira a virgindade.

-E porquê você não me ofereceu antes?

- Você ia achar que eu sou uma sem vergonha qualquer.

- E se eu tivesse pedido e você tivesse feito, não seria sem-vergonhice?

- Claro que não. Seria um favor. Você me faz um favor, eu te faço outro. Agora que você está feliz e aliviado, vamos dormir. Se não quiser deixar a luz acesa eu fico deitada em seu peito.

Tive que rir de novo. E bastante.

- Então você acha que eu vou agüentar, quieto, sossegado, você com as tetinhas encostadas em mim, com esse corpo nu colado ao meu, só porque me aliviei no banheiro?

- E porquê não? Vamos, deixe de fricote e vamos dormir que amanhã eu quero colocar essa casa nos trinques.

- E quem disse que você estará aqui amanhã?

Ela se levantou de um pulo, com o corpo enrolado no lençol, sentou-se no meio da cama e me interrogou com severidade:

- Olhe nos meus olhos e me diga com toda a franqueza: você terá coragem de jogar no meio da rua uma pobre moça que não tem ninguém no mundo?

- Tem sim. Você tem seu irmão e eu tenho minha noiva. Não posso ficar com você aqui.

- E vale a pena uma noiva que não tenha senso de caridade? De solidariedade? De amor ao próximo? Você pode dizer a ela que sou sua empregada, sua governanta, sei lá...

- Quem sabe até dizer que é minha chefa da criadagem? Ela vai acreditar no ato. Ingênua como ela só.

- Olha aqui, meu querido, como é que você se chama mesmo? Então, meu querido, está vendo aquela mala ali? Ali dentro tem um bocado de dinheiro. Quem se casar comigo vai ter um dote muito bom, muito bom mesmo, pra começar qualquer negócio. Vá até a casa de sua noiva, aquela egoísta insensível, termine o noivado e volte aqui pra gente conversar com calma.

- É uma ordem ou uma sugestão?

- É uma oportunidade que estou te oferecendo. Você nunca mais conhecerá uma moça como eu. Pode ter certeza.

- Eu ficaria bem mais feliz se tivesse essa certeza, pode crer. Quanto você tem na mala?

- Não é da sua conta. Só vou contar pra quem puser uma aliança no meu dedo direito.

Por pura brincadeira, tirei minha aliança de noivado e a coloquei em um de seus finos dedinhos. Os olhinhos dela brilharam:

- Tem mais de quinhentos mil naquela mala.

- Você está brincando...

- Abra e veja por sua conta.

Abri a mala achando que era brincadeira dela, gozação com a minha cara, e levei um susto ao ver um monte de pacotes de dinheiro graúdo.

- Tem mais de quinhentos mil aqui?

- Pode contar.

Antes mesmo de começar a contar comecei a me lembrar de como minha noiva estava ficando chatinha ultimamente. Ranzinza, ciumenta, pegando no meu pé, começando a querer controlar minha vida, uma quase patroa, enfim. Antipática feito ela só. E a mãe dela, então? Um verdadeiro entojo.

- Posso pegar um pouquinho desse dinheiro?

- Depende. Pra fazer o quê?

- Comprar um par de alianças novas. Essa aí está larga e feia demais para uma noiva tão bonita. Como é mesmo seu nome?

- Maria da Felicidade. Como é que você disse mesmo que se chama?

- Interesseiro de Oliveira, às suas ordens.

Meu primeiro caso de amor à primeira vista. Coisa de pele, magnetismo, atração fatal, sei lá...

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 11/12/2007
Reeditado em 14/12/2007
Código do texto: T773321
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.