O caso Iracema

Personagens:

Clara Corcovado, jovem repórter da Rádio Capital, entrevista.

Roberto Robledo, deputado federal supostamente envolvido em falcatruas, responde.

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Supostamente: advérbio de modo que indica incerteza ou hesitação numa frase. Em casos envolvendo gente poderosa, repórteres e jornalistas costumam dizer sempre que determinado indivíduo está “supostamente envolvido”, mesmo sabendo que ele está “profundamente envolvido” numa maracutaia, por exemplo. Porque, caso não seja mencionado o “supostamente”, a pessoa pode processar o veículo de comunicação e o jornalista. O que, no Brasil, é muito mais comum do que supostamente se supõe.

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Clara perguntava: “Deputado Robledo, como o senhor se sente comemorando seus 45 anos em meio a mais uma crise política?”

A resposta do deputado: “Apesar de tudo me sinto muito bem. Para mim nada mudou, este continua sendo o país do futuro. Me sinto como se ainda estivesse no passado, como se ainda não tivesse passado dos quarenta anos. Me sinto jovem, com muita disposição para honrar o mandato que me foi conferido pelas urnas livres deste país que eu amo tanto, para quem trabalho tanto, com tanto empenho...”

“Muito bem, deputado. Agora, outra pergunta: certamente o senhor está participando de alguma Comissão Parlamentar de Inquérito no momento, não?”

“Sim, é claro! Me orgulho de informar a você, jovem noticiadora incansável, aos seus sensacionais ouvintes, e aos meus maravilhosos eleitores que estamos trabalhando diuturnamente pelo bem do nosso país. Além do trabalho nas CPIs, estamos lutando fortemente contra um novo projeto de lei que propõe a proibição de fumar e dirigir ao mesmo tempo, e que, se aprovado, tiraria o emprego de milhares de pais de família...”

“Desculpe interromper, deputado Robledo, mas não vejo como essa proibição poderia causar desemprego no país.”

“A senhorita é muito jovem, não é casada nem tem filhos, certo?”

“Certíssimo, deputado.”

“A senhorita fuma e dirige ao mesmo tempo, falando ao celular ainda por cima?”

“Claro que não! Não fumo, como também não falo ao celular quando dirijo!”

“Aí está! É por isso que a senhorita não entende a complexidade do problema; por não estar devidamente envolvida nele! Além do que tem um ótimo emprego na Rádio Capital, certamente a melhor emissora de rádio do país, e não corre o risco de perdê-lo, porque é uma entrevistadora muito competente. Se a senhorita algum dia fosse demitida indevidamente tenho certeza que os ouvintes da Rádio Capital imediatamente exigiriam sua volta. E como eu estava dizendo antes de ser interrompido, gentilmente interrompido pela senhorita, quero registrar agora que me sinto muito honrado por estar ajudando a passar o país a limpo, através do meu trabalho incansável.”

“Sim, deputado. Mas quanto às CPIs...”

“Estamos trabalhando demais: são dez CPIs atualmente!”

“Dez CPIs?! Mas com tanta CPI instalada, sobra tempo para os parlamentares aprovarem algum projeto útil ainda neste ano?”

“É claro que não; é muita CPI de uma vez só. Um absurdo! Sou completamente contra mais de uma CPI por ano!”

“Mas se foram constituídas tantas CPIs é porque tem muita gente fazendo coisa errada, o senhor não concorda?”

“Não posso deixar de concordar com a senhorita: tem muita coisa errada e muita roubalheira neste país, sem dúvida!”

“Infelizmente! Mas o senhor ainda não respondeu à minha pergunta...”

“Ah, sim! Das dez CPIs instaladas, estou participando de seis.”

“Seis, deputado?! Então o senhor deve ser um recordista de CPIs, parabéns! E certamente participa como relator em algumas delas, não é?”

“Bem, como relator participo de apenas uma CPI. Fui designado pela direção do meu partido. Da qual faço parte, como a senhorita deve saber.”

“Sim, certamente. E nas demais CPIs, qual é a sua função?”

“Em outras duas CPIs atuo como membro. Fui escolhido pelos nobres colegas deputados.”

“Claro, claro. E o que o senhor faz nas três CPIs restantes, deputado?”

“Participo como réu. Fui indiciado pela Polícia Federal.”

“É mesmo? Que maravilha, deputado!”

“Obrigado, senhorita, sempre muito gentil, como poucos da imprensa deste país que amamos tanto e que...”

“Deputado... Um momento, por favor; o senhor disse indicado ou indiciado?! E também disse réu, foi isso? Não ouvi direito, por causa do barulho aqui dos colegas.” (Referia-se aos demais jornalistas presentes, também querendo fazer suas perguntas, alguns até mesmo aproveitando para dar uma encoxada na repórter.)

“Eu disse indiciado. E réu, sim.”

“É mesmo?! Pensei ter ouvido rei, ‘rei das CPIs’, é claro e ‘indicado’, rei indicado das CPIs... Mas... Mas então o senhor deve estar bastante preocupado, ainda mais se são três indicamentos, quero dizer, indiciamentos, não?”

“Não me preocupo nem um pouco, senhorita! Vou me livrar de todos eles ou meu nome não é Roberto Robledo. Espere para ver!”

“Esperaremos todos, deputado Robledo! Certamente! Mas continuando, quanto ao novo escândalo que veio à tona no mês passado, o caso dos 79 deputados e senadores carecas, perdão, calvos, que também recebem o auxílio-tintura, a verba destinada à compra de tintura para cabelos dos parlamentares. O povo já apelidou o novo escândalo de O Caso Iracema, aquela dos cabelos mais negros que as asas da graúna, como o deputado deve saber. É verdade que o senhor está envolvido, mesmo não sendo calvo e tendo os cabelos abundantemente negros?”

“Sem dúvida! Nosso povo, além de ser muito inteligente, senão não teria me elegido, também tem bastante senso de humor. Achei Caso Iracema uma preciosidade de nome para um escândalo..."

"Mas deputado, e a minha pergunta: há rumores de que o senhor também esteja recebendo esse benefício..."

"Na verdade, estamos todos envolvidos, carecas e não carecas, quero dizer, calvos ou não, loiros, morenos e ruivos, afrodescendentes ou quilombolas, povos nativos... Veja, senhorita: a maioria do Congresso pinta os cabelos para ficar bem na foto e na fita, como se diz, quer melhorar a imagem junto à população. É uma compensação para os parlamentares calvos. É muito ruim para a imagem do deputado ou senador a ausência de uma boa capilaridade; os eleitores com baixa renda e escolaridade, desdentados, semianalfabetos mesmo, apesar de votarem maciçamente no meu partido, mesmo assim têm a mania de achar que todo político calvo é um frouxo, não tem aquilo roxo, sabia? Perdão pela grosseria, mas as palavras tinham de ser ditas, senhorita. Então deliberamos que os parlamentares calvos também recebessem a verba do auxílio-tintura. Para que fossem formando uma poupança e depois comprassem perucas ou fizessem implantes capilares... Isso o que é, desvio de dinheiro público? Não, senhorita: isso é democracia! Respeito às minorias, isso sim!”

“O povo todo não anda pensando assim, deputado, acho que nem mesmo seus eleitores... E sua ideia até pode ser muito boa esteticamente falando, mas e se o parlamentar não quiser usar peruca, não quiser fazer implante capilar, não quiser nem mesmo tingir os cabelos, como é que fica então?”

“Senhorita, aí o problema é de cada parlamentar, se quer ou não ficar bem na fita e na foto. E como é que fica? Fica com o dinheiro e faz bom proveito dele, uai!”

“Fica com o dinheiro público assim, sem mais nem menos, deputado?!

“É claro que não, senhorita, senão vira bagunça! Cada parlamentar tem de prestar contas de seus gastos, apresentar os devidos recibos ou notas fiscais comprobatórias, e isso é tudo muito simples e fácil de conseguir em qualquer estabelecimento comercial não muito conhecido. E continuando, naquele dia eu mesmo presidi a sessão conjunta do Congresso, colocamos o projeto em urgência urgentíssima para votação e o aprovamos. E como a sessão correu dentro dos conformes e parâmetros legislativos, não creio na necessidade de instalação de uma comissão parlamentar de inquérito para o caso. Outra CPI. Iracema ou Ceci e Peri, sei lá, agora seria bastante contraproducente. Paralisaria todo o trabalho legislativo, que na verdade já está completamente paralisado faz tempo, com tanta investigação inútil. Então, acredito que a tal de CPI José de Alencar, perdão, Iracema, não será criada de modo algum. Pelo bem do país e da democracia, claro!”

“Claro, deputado, claro. Mas claro ou escuro, não importando a cor da tintura dos cabelos, como eu já disse, o caso repercutiu mal entre a população, o senhor sabia, não? E as eleições vêm aí...”

“A população é sempre sábia ao votar, senão a voz do povo não seria a voz de Deus. E Deus, a senhorita sabe, costuma escrever certo por linhas tortas. Então nem sempre a população compreende plenamente certas medidas aprovadas e alguns projetos votados pelo plenário desta Casa ou do Senado, por desconhecimento dos procedimentos internos e muitas vezes por não conseguir perceber claramente a diferença entre as questões éticas e as questões estéticas. O chamado caso Iracema é simplesmente uma questão estética, nada mais do que isso. Pode ter havido excesso de coloração capilar, mas não houve falta de decoro parlamentar, compreende?”

“Não. Não estou compreendendo, deputado...”

“Senhorita, não se preocupe tanto com essas coisas: ninguém tem a obrigação de compreender tudo o que acontece no mundo inteiro o tempo todo! Além disso, o problema de querer saber tudo ou de ter opinião sobre todas as coisas é que a gente pode acabar quebrando a cara ou alguém pode querer nos quebrar a cara, sabe como é? Bem, mas no meu caso, posso lhe assegurar que, em respeito ao meu fiel eleitorado, no exato dia do meu aniversário de 45 anos, dois dias atrás, portanto, tomei a decisão de não mais pintar os cabelos nem meu bigode. E também de doar toda a minha verba do auxílio-tintura para uma instituição de caridade em minha família, desculpe, em minha cidade, que vai pintar os cabelos brancos de todos os velhinhos e velhinhas desamparados que atende. Entidade administrada por minha querida esposa, que é pessoa virtuosa, de minha inteira confiança!”

“Realmente?! Quanto desprendimento, deputado Robledo! Meus parabéns e obrigada pela entrevista esclarecedora!”

“Obrigado, senhorita Corcovado. Sempre tão gentil com os parlamentares!”

Obrigado também a todos aqueles que elegeram deputado o desprendido senhor Robledo, claro. Mas isso Clara Corcovado não disse nem pensou. Pensou sim que seria bom dar uma ajeitada nos próprios cabelos no final de semana. Como muita gente faz também antes de se dirigir ao local de votação na hora de votar, porque tão importante quanto apertar a tecla verde da urna eletrônica é ficar bem na foto e na fita, não é mesmo?