Ray Armstrong no Céu

Esta história se passa em seguida à passagem do furacão Hurricane por uma daquelas cidades jazzísticas do sul dos Estados Unidos. Um desastre que acabou, entre muitas coisas, com o clube de jazz onde Ray Armstrong tocava. Com sua vida também.

Bem mais tarde, na mesma noite desse dia...

O músico negro bate, bate, bate na porta do Céu, com força, como na antiga canção de Bob Dylan. Alguns minutos depois, um homem idoso, todo de branco, incluindo barba, cabelo e sobrancelhas, abre a porta. Ele aparenta estar sonolento e mal-humorado.

Com a palavra o morto: “Boa noite. Posso entrar, senhor porteiro?”

“Então é o senhor que me acorda a essas horas? E eu não sou porteiro, não; sou São Pedro, sabia?"

“O senhor me desculpe, mas como eu poderia conhecer as pessoas daqui de cima se nunca morri antes? É a minha primeira vez, homem!”

O santo branco continua bravo: “Homem sim, mas acima de tudo, santo! E não desvie o assunto, senhor. Não haverá uma segunda vez para morrer. Por este trompete que o senhor carrega vê-se que era músico, mas percebo que não era católico, apostólico e romano, não? Não me reconheceu, pensou que eu fosse um porteiro da noite qualquer!”

O músico replica: “Não, não sou católico, apostólico também não e romano menos ainda. Sou um cidadão americano, quer dizer, era. Até a passagem do Hurricane... Bem, eu sou Armstrong, um músico americano. O senhor não tem aí uma lista dos mortos recentes?”

O santo resmunga alguma coisa e dá uma consultada no livro dos mortos: “Bem, aqui está: Armstrong, Ray! O próprio Ray Armstrong? Hum... Devo lhe dizer que o Homem não gosta nem um pouco de jazz. Somente aprecia os clássicos, Haendel, sobretudo. Mas o Filho do Homem gosta até de rock, infelizmente. E ouve escondido, para não ser repreendido pelo Pai, que é muito severo. E olha que o Filho não é nenhuma criança, já fez trinta e três anos faz um bocado de tempo.”

Armstrong não disse nada; continuou ouvindo o santo: “E saiba, foi por causa de sua decência e retidão, apesar de não ter nenhuma religião, que o senhor caiu aqui na minha porta, feito um paraquedista de primeiro salto. Agora conheça nossas instruções: quando o senhor passar por esta porta vai deixar tudo na Administração, inclusive seu instrumento que aqui só é permitido tocar harpa, vai receber seu camisolão branco de anjo, com asinhas, seu par de pantufas, sua harpa e depois vai passar na Contabilidade e retirar um número correspondente a uma nuvem. Saindo dali tome o caminho da direita, do Paraíso, procure sua nuvem, acomode-se e comece a tocar sua harpa.”

“Então, é isso o Paraíso? Ficar sentado numa nuvem, vestido de anjo e tocando harpa?!”

São Pedro replicou: “Exatamente, e por toda a eternidade! Não tem essa de vida passada, de voltar no corpo de outro, não existe essa história de transmigração de alma, de metempsicose, nada disso! Seria o quarto mistério de Fátima a ser revelado, mas as criancinhas portuguesas eram apenas três e acabou ficando de fora do pacote das revelações.”

“O senhor está dizendo que vou ficar aqui pela eternidade? Vestido de anjo? Negro e avantajado como sou, devo ficar ridículo! Prefiro ir para o Inferno, pois se ficar aqui acho que vou terminar maluco!”

“Mas maluco o senhor já é! Como pode querer trocar o Paraíso pelo Inferno? Lá é escuro, há racionamento de combustível grande parte do ano, a bebida é ruim, é contrabandeada, as pecadoras bonitinhas vão todas para o harém do Diabo etc. etc. E um dia vai ser assado pelo próprio capeta, quando as filas diminuírem... "

"Quando as filas no Inferno diminuírem? O que o senhor está querendo dizer com isso?"

"Que o Diabo deve para Deus e todo o mundo, ora! Os credores vivem ameaçando-o, volta e meia cortam o fornecimento de combustível... Bem, mas eu ia dizer outra coisa: para o senhor que é um músico reconhecido pelo talento e bom gosto, vai ser tremendamente desconfortável ouvir o que se toca no Inferno o dia todo: muita música ruim! É som bate-estaca o tempo todo, Deus me livre!”

“Mas se for para ficar sem tocar meu trompete prefiro mesmo ir para o Inferno, apesar do que se passa lá. Com perseverança talvez eu consiga convencer dois ou três músicos a formarem um grupo de jazz comigo durante algum tempo, antes de ser queimado pelo Diabo!”

“Esqueça, senhor Armstrong, o Diabo não vai permitir música de qualidade lá, seja clássica ou moderna, somente música ruim. Que é uma forma de castigo para os que estão no Inferno, aguardando nas enormes filas. Quanto ao jazz, que nada! Ele entende de jaz, de fazer jazer no fogo, não de jazz, de metais em brasa. Do que ele gosta mesmo ou gostava tempos atrás, é da dança da boquinha da garrafa, o safado! E de loira oxigenada e popozuda!”

“Caramba! Mas como é que o senhor sabe disso? Já esteve no Inferno algum dia?”

“Mais respeito, senhor Armstrong, mais respeito! Eu sou um homem santo; é claro que nunca estive no Inferno! Mas sou bem informado, temos embaixadores, e nossas relações com o capeta são apenas comerciais, não espirituais, entenda isso. Ele é um dos nossos, melhor, foi um dos nossos, bem ou mal gerencia seu negócio, o senhor deve conhecer a história do anjo desgarrado, não vou recontá-la agora. Quanto ao senhor, por sua decência e importância musical, apesar de eu não gostar de jazz nem o Homem, apenas Seu Filho, é importante para nós, como propaganda, que fique do nosso lado. O senhor me entende?”

“Não entendo de jeito nenhum! Apesar de todas as deficiências, acho que o Inferno deve ser muito mais divertido que o Paraíso. Se é mesmo uma grande bagunça lá, então não devem proibir nenhum tipo de instrumento ou gênero musical.”

“Entenda de uma vez, senhor Armstrong: não posso mandá-lo para o Inferno nem de volta para a Terra de jeito nenhum, não por enquanto. O senhor vai se acostumando no Paraíso, vai observando e se entrosando, depois talvez queira ficar para sempre. Se não quiser, então no futuro tentarei fazer alguma coisa pelo senhor, com a intercessão do Filho do Homem. Que certamente vai querer conhecê-lo, tornar-se seu amigo, já que aprecia jazz tanto quanto rock, como eu já disse. Quando o Papa reabilitar alguém que a Igreja Católica mandou para o Inferno indevidamente, durante a Inquisição, por exemplo, talvez possamos fazer uma troca. Exceto o Pai e o Espírito Santo, também já fomos humanos um dia e cometemos vários erros.”

“Se existe essa possibilidade, de trocar o Paraíso pelo Inferno, também não é possível que eu retorne à Terra? Já vi isso acontecer no cinema. E o meu corpo não foi encontrado mesmo, ninguém vai se espantar se eu voltar lá pra baixo.”

“Certeza absoluta. O senhor mesmo está dizendo: acontece no cinema, na ficção. Mas não no plano sobrenatural. Ou o senhor fica no Paraíso ou troca o Paraíso pelo Inferno mais adiante. Nem mesmo Miles Davis, que foi um músico radical de jazz permaneceu muito tempo no Inferno, sabia? Não que tivesse pedido para sair de lá.”

“Poxa! Quer dizer então que Miles Davis deu uma enorme contribuição para a música, é considerado um mestre do jazz e vocês o mandaram diretamente para o Inferno?”

“Calma, senhor Armstrong. Miles Davis ficou apenas um dia no Inferno e não se queimou nem um pouco. O próprio Filho do Homem o retirou de lá, quando soube. E saiba que com Billie Holiday aconteceu a mesma coisa décadas atrás. Sob os protestos do Pai, claro. E também dos meus. Mas agora entre, senhor Armstrong, e conforme-se. Por favor, dirija-se à Administração. Peça ao funcionário do Atendimento para falar com o senhor Marx; ele já deve estar com sua ficha em mãos. Penso que o senhor vai gostar de conversar com ele, que está sempre bem-humorado, fazendo muita piada depois que se curou das hemorroidas. De tanto ficar sentado no macio das nuvens, decerto! Faz piadas leves, bem entendido, nenhuma radical. Pena que não tenha largado o vício dos charutos...”

“O senhor disse Marx, viciado em charutos? Não acredito que Groucho Marx esteja trabalhando na Administração do Céu! É impossível: essa é a piada do século; do século não, do milênio!”

“Calma novamente, senhor Armstrong! Não vá tirando conclusões precipitadas! Não se trata de Groucho nem de qualquer um dos seus irmãos Marx. Eles certamente avacalhariam o Céu... Não aceitariam fazer parte de um clube celestial que os acolhessem como sócios. Por conta do humor radical deles, todos foram ter ao Purgatório. E ficarão purgando lá por um bom tempo ainda... Na Administração está alguém bastante respeitável e com conhecimento técnico, um administrador responsável, o senhor Karl Marx.”

“Karl Marx?! Trabalhando no Céu?! Mais inacreditável ainda! Mas como, se Marx era ateu e ainda por cima afirmava que a religião era o ópio do povo?”

“Fale baixo, por favor! Pois é, senhor Armstrong. Cá entre nós, eu fui contra, terminantemente contra, assim como o Pai. Mas o Filho gostava demais das ideias de Karl Marx. Aliás, algumas das ideias de Marx foram inspiradas nas do próprio Filho, se é que o senhor me entende. Karl Marx, ao morrer, foi mandado diretamente para o Inferno, mas o Filho exigiu que o Pai o retirasse de lá. O senhor sabe como é filho único, traumatizado pelo que sofreu na Terra, mas também muito cheio de manias. Megalomanias, eu diria! Deu no que deu: Marx e o Filho do Homem são amigos do peito faz mais de um século. Eram dois barbudos sonhadores, continuam barbudos. E Marx fez um trabalho administrativo de muita valia aqui; o senhor certamente vai gostar de conhecê-lo.”

“Que coisa mais louca: Marx no Céu e amigo do Filho do Homem... É absurdamente inacreditável!”

“Exatamente! Então o senhor compreende agora porque ninguém pode voltar para a Terra depois de ter passado pela porta do Céu? Ficaríamos completamente desmoralizados se alguém contasse essas coisas lá embaixo; eis a razão! Aqui em cima ainda nos importamos muito com tudo isso, mas... Mas agora entre, senhor Armstrong. Entre, e tenha uma feliz estadia no Paraíso. Eu lhe garanto que ficando conosco o senhor vai ter outras surpresas. Muitas!”

Nem de longe Armstrong imaginava que, com essas palavras, São Pedro referia-se igualmente ao fato de que o Filho do Homem era bastante moreno, tinha cabelos não exatamente lisos e olhos nada azuis, mas quase negros. E que às vezes saía de trás de alguma nuvem acompanhado da esplendorosa Marilyn Monroe. Sim, a estrela loira de O Pecado Mora ao Lado também morava ali. No Paraíso ela resplandecia eternamente.

Armstrong entrou, despediu-se do santo e tomou o caminho da Administração. Ainda um pouco preocupado, mas bastante curioso para confirmar se finalmente veria Karl Marx atrás de uma mesa de escritório, trabalhando. De verdade, e não teorizando sobre economia, política, sociologia...

São Pedro despediu-se do músico com um sorriso bonachão, depois bocejou demoradamente. Em seguida pegou sua chave no bolso e fechou a porta do Céu mais uma vez. Antes de chegar na Administração o músico topou com outro Armstrong, o primeiro homem a pisar na lua, Neil Armstrong, coisa que ele só descobriu no dia seguinte, conversando com o próprio. Eram vizinhos de nuvem...