Nem tudo são flores...

No jornal de domingo (FSP, 16/04/2023) havia uma matéria sobre as canções brasileiras mais gravadas no país e no exterior. Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes ocupa o primeiro posto. No segundo aparece Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, empatada com Carinhoso, de Braguinha e Pixinguinha. A lista contempla doze canções e seis são composições de Tom Jobim, sobre quem, pela excelência de sua música, não é preciso dizer muita coisa.

Quanto a Ary Barroso, li alhures que ele queria porque queria, quando morresse (o que ocorreu em 1964), que em sua lápide fosse gravada a seguinte frase: "Aqui jaz um homem que odiava jazz.” Coisa que felizmente sua mulher não cumpriu, talvez por entender que Ary queria apenas fazer uma gracinha, um jogo de palavras. Ou então, porque sabia que Ary, embora não reconhecesse, devia muito aos músicos de jazz, especialmente americanos, pela divulgação não apenas de Aquarela do Brasil mundo afora (que ficou conhecida simplesmente como Brazil), também de muitas outras composições brasileiras.

Falando em frases lapidares como a de Ary, no túmulo de Tom Jobim não há nenhuma além das informações habituais, mas bem que poderia nele constar um trecho de sua canção Querida, que muito se aplicaria ao seu caso, pois morreu com apenas 67 anos (em 1994), mas está eternizado na memória de todos que apreciam boa música: “Longa é a arte, tão breve a vida”, que é, na verdade, uma citação do chamado pai da Medicina, o médico grego Hipócrates.

Mudando da música para a literatura, outro gênio brasileiro, Machado de Assis, nos legou um dos mais brilhantes inícios de livro de todos os tempos. Aquele que encontramos em Memórias Póstumas de Brás Cubas, que é uma curiosa dedicatória, esta: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.” A obra, uma das mais notáveis de nossa literatura tem, entre seus admiradores internacionais, ninguém menos que o cineasta Woody Allen, diretor de ótimas comédias.

Numa lista de seus livros favoritos – O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, ocupa o primeiro posto – Allen colocou o livro de Machado (em inglês The Posthumous Memoirs of Brás Cubas) em quinto lugar. E pensar que muita gente jamais teve em mãos um livro do nosso genial autor. Caso do meu primo Ariovaldo, que nunca foi muito chegado a qualquer tipo de arte. Se leu alguma coisa de Machado foi apenas por obrigação escolar, penso. Num feriado ou domingo preferia jogar futebol ou ver uma partida na televisão a ir ao cinema. Desconfio que nem sabia da existência de Woody Allen.

E já que falei novamente no cineasta, ele tem uma ótima frase sobre a morte: “Não é que eu tenha medo de morrer. É que eu não quero estar lá na hora que isso acontecer.” Ninguém quer estar, talvez apenas os suicidas, pode ser, não? Pouco antes de falecer - mesmo porque depois de morto seria impossível nossa conversa já que nem eu nem ele jamais acreditamos em espiritismo ou crenças assemelhadas - Ariovaldo me relatou um acontecimento passado no cemitério local e relacionado ao túmulo de seus pais, meus tios. Ali ele descobriu uma surpreendente inscrição que o deixou chocado, mortificado.

Então, ele trabalhava numa conceituada organização contábil, cujo proprietário era um idoso senhor com certas manias. Uma delas era a que quando falecia um cliente do escritório (ou a mulher dele, a mãe ou o pai, algum filho etc.), costumavam enviar uma coroa de flores e também alguém da firma tinha de comparecer ao velório do sujeito ou do parente dele e mesmo acompanhar o sepultamento. Havia até uma escala dos funcionários estabelecida para que isso sempre se verificasse, nenhum velório ou sepultamento de cliente ficava sem a presença de um representante da contabilidade.

Também havia uma torcida enorme entre os funcionários da organização para que o idoso proprietário morresse logo e isso acabasse, ainda mais que os custos das coroas de flores eram divididos entre todos ali. Não era tanto assim, mas a muitos deles isso parecia bastante injusto, um abuso mesmo, já que, por outro lado, o proprietário nunca promoveu o que poderia ser chamado de “distribuição de lucros” da firma.

Mas um dia o velhinho faleceu. O escritório ficou fechado apenas naquele dia, uma terça-feira: todos foram ao velório, mas pela escala já mencionada coube ao meu primo Ariovaldo passar a noite velando o corpo e acompanhar, na manhã do dia seguinte, o sepultamento. Determinação do filho do idoso, o herdeiro da organização; os demais funcionários trabalhariam normalmente na quarta-feira, havia muito serviço, a vida continuava etc. Até aí tudo bem que o filho também era um usurário feito o pai, isso todos sabiam e deploravam, mas aceitavam, pois garantir o emprego era necessário.

Voltando ao Ariovaldo, alguma coisa inusitada e apavorante lhe ocorreu no dia do sepultamento do patrão, depois de fechado seu túmulo. Não, mesmo tendo passado a noite toda velando o corpo dele juntamente com seus familiares, e se encontrando bastante ensonado e esfomeado como estava, não caiu dentro de alguma cova recém-aberta quando caminhava entre os túmulos, coisa que já havia ocorrido com nosso avô havia alguns anos, que precisou da ajuda dos bombeiros para ser dela retirado, felizmente apenas com alguns hematomas.

Ariovaldo se dirigiu ao túmulo dos pais, ali rezaria um pouco e depois iria para casa: não precisaria trabalhar naquele dia porque passara a noite e a manhã no velório, conforme estipulara a firma. Quando chegou ao túmulo lá viu, apavorado, que havia no jazigo da família algo novo: junto às fotos dos pais, uma foto dele mesmo e logo abaixo seu nome completo, data de nascimento correspondente à sua enquanto que a do falecimento era a mesma daquela quarta-feira, do mês e ano corrente, tudo gravado em metal.

Claro que ele não acreditou no que viu, esfregou os olhos como se pudesse fazer aquela imagem desaparecer, mas a coisa continuava lá. Coração disparado, olhou para todos os lados buscando a ajuda de alguém que pudesse lhe confirmar que somente ele estava vendo aquilo, que tudo não passava de uma alucinação, cansaço, sono, qualquer coisa assim, e que uma boa xícara de café forte o restituiria à realidade. No entanto, nada disso ocorreu: ele estava sozinho ali em frente ao jazido da família, suando frio, estarrecido. Tinha de fazer alguma coisa, aquilo era um grande equívoco, porque brincadeira não podia ser, ninguém seria maldoso àquele ponto, tinha de haver uma explicação para aquela aberração.

Apesar de se encontrar num estado atônito, lembrou-se de que na entrada do cemitério a prefeitura mantinha um serviço de informações fúnebres, um pequeno escritório, e talvez algum funcionário dali o auxiliasse a entender o que estava acontecendo. Não teriam enterrado algum sujeito, seu homônimo, ali no túmulo da família, indevidamente, por engano, sabe-se lá? Lendo jornais ele sabia que não eram tão raras as trocas de corpos de defuntos, equívocos cometidos em hospitais ou pelas funerárias não eram assim tão incomuns, erros também poderiam ocorrer nos cemitérios, não seria o caso?

Com essa esperança se dirigiu ao escritório do cemitério, mas ainda se encontrava angustiado, nervoso, suando em bicas, como se estivesse dentro de um filme de terror; sua cabeça era um redemoinho de imagens e pensamentos. Cuidou para não tropeçar nos túmulos, mas tropeçou sim, até caminhou por cima de alguns na pressa que tinha de chegar, coisa que ninguém devia fazer porque um túmulo é um local sagrado, haviam lhe ensinado em casa desde pequeno.

Mas não se preocupou nada com isso, queria chegar logo no escritório, esclarecer aquela situação esdrúxula, pavorosa: ele estava vivo não morto; se não tivesse ocorrido um erro dos funcionários do cemitério, então quem teria ultrajado o túmulo dos pais e o ofendido tão gravemente, um louco? Sim, ele se sentia ofendido, não apenas angustiado, apavorado, desnorteado: queria uma explicação para aquilo. Entrou tão subitamente pela porta do escritório que assustou o funcionário. Foi logo lhe fazendo perguntas, aos borbotões, mas o outro lhe pediu que se acalmasse, respirasse fundo, lhe ofereceu um copo d’água e uma cadeira.

Ele aceitou, ofegante ainda bebeu a água e isso pareceu acalmá-lo um pouco. Aos poucos, conseguiu colocar as ideias em ordem, explicar ao funcionário o que se passara, melhor, o que estava se passando, o senhor pareceu entender tudo, pediu sua identidade para fazer uma pesquisa nos arquivos do computador. Mais exatamente nos velórios e sepultamentos daquela quarta-feira. Se Ariovaldo estava vivo, ali na sua frente, não poderia estar morto, mas mesmo assim não lhe custava nada fazer a pesquisa, procurar um homônimo morto, como queria meu primo. Dos cinco sepultamentos, e não haveria mais nenhum naquele dia, viu que estava tudo certo.

Tudo batia com os registros do cemitério porque outros funcionários acompanhavam todo o processo desde a chegada do corpo até o fechamento da cova ou prateleira que abrigaria o caixão do falecido, havia ainda a cobrança pelo serviço, uma guia a ser paga ali mesmo no escritório etc. Ao fim, o funcionário lhe assegurou que nada havia em seu nome, nenhuma emissão de guia de sepultamento, nenhum registro, claro, portanto ele estaria equivocado, passando por um profundo estresse, qualquer coisa assim. Ariovaldo não gostou nem um pouco que o homem o diagnosticasse daquele modo, pois ele era um funcionário municipal, não um médico ou psiquiatra, então zangado elevou a voz, mas ouviu do outro o que seria de se esperar:

- Meu senhor, nada disso ocorreu, o senhor só pode estar delirando!

O funcionário quase gritou com meu primo, o que foi ótimo porque exatamente naquele instante Ariovaldo acordou de seu sonho, na verdade, um terrível pesadelo: viu que estava em casa, não no cemitério municipal. Então respirou aliviado e seu coração aos poucos voltou a bater regularmente, embora sua boca tivesse permanecido seca por vários segundos ainda: teve dificuldade em engolir, mas isso também passou depois de beber um pouco de água de um copo ao lado da cama. Deixou o leito, tomou banho e depois o café da manhã, estava recuperado, pegou o automóvel e foi trabalhar.

Guardou para si o pesadelo, não comentou nada com ninguém então. Voltou à rotina, ainda que nos dias seguintes sua memória volta e meia o lembrasse do sonho ruim, por vezes até mesmo enquanto fazia cálculos, tentava entender a legislação sobre a contabilidade das empresas, que mudava constantemente, ou preenchia planilhas de Excel...

Não é impossível morrer de susto, e o coração de Ariovaldo parecia não ter resistido muito bem àquele trauma onírico ou ele já tinha algum problema cardíaco anterior que teria se agravado recentemente, antes que uma consulta médica e exames complementares diagnosticassem uma grave doença. Tanto que viveu mais uns poucos dias apenas. Teve tempo de me contar essa história, e no dia seguinte morreu de um infarto agudo do miocárdio.

Não tendo deixado descendentes, decidimos que nenhuma inscrição - além daquelas informações habituais - seria colocada no túmulo da família quando de seu sepultamento, a que compareceram um funcionário da organização além do proprietário, uma distinção que lhe coube em morte. Um outro primo, Antonio Carlos, conversando comigo depois e lembrando do caso do Ary Barroso, disse que queria que no seu túmulo constasse a seguinte frase: "Aqui jaz um leitor que nunca leu Paulo Coelho." Achei que era uma boa frase, mas não passava de brincadeira dele, que na verdade já tinha determinado aos familiares que quando morresse desejava ser cremado.

Bem, mas tratávamos do outro primo, o morto Ariovaldo, e mesmo que ele não apreciasse tanto assim literatura, cinema ou boa música, senti muito sua morte. Não apenas por ser meu parente, mas também porque nos dávamos muito bem apesar de nossas diferenças culturais. Igualmente, sentiram muito a morte dele seus colegas de trabalho. Mas por outros motivos, verdadeiro azar deles.

Porque além de pagarem as despesas pela remessa das coroas de flores para o velório (que nesse caso foram as mais caras da floricultura), costume que permaneceu inalterado na organização até hoje, ainda receberam mais trabalho para fazer, pois com a morte de Ariovaldo haveria um funcionário a menos ali e outro para substituí-lo não seria contratado tão cedo. Talvez nunca mais, porque, nas palavras do herdeiro da organização, meu primo era insubstituível. Como diz o povo, há males que vêm para piores...