Dor e cura

Meu corpo dói todo santo dia. Você não faz ideia do quão ruim é isso. Com dor você acaba perdendo a vontade de fazer tudo: já não limpo a casa, não tenho mais vontade de ir ao parque fazer piquenique ou então alimentar os peixes. E Deus sabe o quanto eu amava alimentar aqueles peixes.

Tentei de tudo também. Toda forma de medicina que você possa imaginar. Tradicional e alternativa. Ás vezes até acabava misturando as duas. Certo, certo, vou explicar.

Fui ao médico certa vez. Odeio hospitais pois sempre acaba voltando pior. As filas nunca terminam e há sempre alguém reclamando do serviço. Também não sou muito fã de ver as pessoas sofrendo. Acabo ficando com muita dó, sabe?

O doutor me chamou e acabou perguntando qual era o meu problema, o que eu estava sentindo. Coisas desse tipo que todos eles fazem.

- doutor, sinto uma dor que me faz paralisar, ás vezes. Começa nos ombros e quando percebo já está em todo corpo. Tomo remédios, tento fazer com que a dor suma, mas ela sempre fica ali.

- certo, quanto tempo faz?

- não me recordo

- a que hora do dia essas dores surgem?

- a partir do momento em que abro os olhos..

Ele me olhou de um jeito estranho, como se estivesse me analisando. Tentei manter meu olhar mas não consigo, odeio ter que ficar olhando nos olhos das pessoas.

- certo, tome essa medicação aqui e está liberado...

Era sempre a mesma coisa. Uma injeção, ás vezes até um soro. Nada resolvia.

Cheguei a ir em um terreiro uma vez (minha namorada era da religião e disse que aquilo poderia me ajudar). Eu até gostei do ambiente, das músicas e tudo, mas não ia prestar pra entrar na religião. Sou muito cético.

Tomei o passe e a pessoa que estava incorporada (ela acabou me explicando como funcionava essas coisas depois), disse que aquilo tudo era carma de vidas passadas. Não prestei atenção. Apenas fiquei lá, quieto. Ouvindo.

Acabei terminando o relacionamento pois eu já não conseguia fazer as coisas. Quando íamos fazer amor era uma tristeza. Ela sempre foi muito fogosa, e era difícil ter que lidar com tudo aquilo. A dor deixava tudo pior.

Não fiquei bravo com ela. Hoje eu até entendo. Quem ia querer ficar perto de alguém que sente dor todo santo dia? Alguém que quase não consegue se levantar? Alguém que possui vinte e cinco anos, mas parece ter setenta?

Meu corpo rangia ao se levantar da cama. Fazia uns sons estranhos. Como se fosse quebrar-se a qualquer momento.

Certa vez resolvi fazer meu café. Bebo sempre sem açúcar. É bom, faz com que você acabe despertando mais rápido. O céu estava nublado e a previsão era de chuva.

Voltei para o quarto, liguei a tv e tentei me concentrar em algo. Quando ouvi o trovão senti algo diferente. Meu corpo inteiro estremeceu. As pernas tremeram. Uma sensação boa percorreu meu corpo (só havia sentido aquilo quando fazia amor com Estela, minha ex namorada que agora estava com um rapaz moreno, alto e mais forte, boa pinta até).

Olhei para fora, queria entender o que havia acontecido. Os pingos de chuva começaram a cair e tudo que fiz (era como se eu não controlasse meu corpo, comecei a agir no automático), abri a janela e ouvir aquele som calmo da água batendo no chão me dava prazer. Tesão. E por algum motivo que desconheço, a dor sumia.

A cada trovão, meu corpo tremia. Era uma sensação tão agradável que por instantes achei que estivesse entrando no céu, ou talvez aquilo tudo fosse apenas um sonho.

Uma vez Estela disse que sonhamos com o que mais desejamos. E fazia sentido: tudo que eu mais queria era ficar sem dor.

Bebi o café de um gole só e pasmem: era outro gosto. Como se anjos derrubassem um mel celestial em minha boca e depois cantassem a mais bela canção. Não senti o gosto amargo. Não parecia que era café.

Peguei meu celular. Minhas mãos tremiam levemente. Eu estava sem forças. Tudo que fiz foi mandar uma mensagem para ela dizendo que eu estava curado. Provavelmente ela veria aquilo e nem desse atenção. Tudo bem. Eu precisava contar que depois de tudo aquilo pude achar a cura.

A chuva era a resposta pra tudo isso.

Ficar sem dor era meu paraíso. E isso durou por algumas horas. Logo, a dor voltou. Minha vida antiga também voltou. E agora quando ouço um trovão começo a sorrir.

Sei que vou pro paraíso.

Kevin Oliveira
Enviado por Kevin Oliveira em 09/05/2023
Código do texto: T7783933
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.