Dor Azul

Fazendo fé a um ditado popular não há fome que não redunde em fartura, e foi o que me aconteceu certa vez; dormir como um morto feliz, uma noite inteirinha, sem pesadelos nem sobressaltos. Dormi tão profundamente que nem me lembrei de ter sonhado. O sonho imiscuiu-se com a veracidade. As lágrimas jorraram reais. Água cristalina salubre, de gosto um nadinha salgado. Sabor a vida e a desgosto. Um contragosto manso do que nem sempre é atractivo e agradável, assemelhando-se ao diagrama da fatalidade.

O tema sobressaltou-me: que diferença há entre o sonho e o pesadelo? O que é aprazível para uns não o será para outros. Os valores distribuem-se por escalas que podem ser invertidas. Que crédito atribuir aos pressupostos?

Não concebo a razão como facto consumado. Ela só faz sentido pelo valor do erro. Se errar é humano o castigo é intolerância grosseira.

Daí o sonho profundo se assemelhar ao pesadelo. Resolvi não pensar no assunto e levantei-me desdenhando as sombras desfalecidas no asfalto. Mas as sombras acompanhavam-me, agigantando-se ao avanço de cada passo, braço dado com a passagem do dia, preocupadas em não se deixarem ficar para trás, perdidas na distância do afastamento. O pretérito e o espaço são esquecimento ou alívio, riqueza ou miséria, quiçá nem uma coisa nem outra, consoante a brevidade da passagem. Eu passo, saboreio e não me relembro. Sou a vivência de tudo sem a lembrança de nada. Recuso a memória porque a anamnese dói como uma ferida mal sarada. Todas as mazelas deixam marcas e a soma delas estrangulam a vontade.

A falta de desejo é uma laranja sem gomos. Vistosa por fora, seca por dentro. Quanto a mim, exauri-me ignorando as sombras que ficaram na luminosidade do tempo privado de efemérides. Despido do tempo o castigo é o vazio. O trágico é o vazio ser imenso e a imensidão ser difícil de medir.

Poderia continuar. Mas para quê? Lá fora o dia mantêm-se sombrio e chuvoso. Eu estou do lado de fora do dia, e no meu coração, trovejam raios de sol cinzento e tombam gotas geladas de dor azul.

De

Moisés Salgado