A RIFA DO PÊDO FILÓ

Pêdo é o modo rude com o que se chama a criatura batizada e cai da mão do escrivão o nome de Pedro. É Pêdo, viu, p-é- pê-dê-o-dó, dito assim Pêdo. Não esqueça do chapeuzinho tal qual o de sua moda de usar antes de dizer vou acolá, indo à rua e parecendo que não tira nunca, nem quando lava os sovacos e as partes, espécie de banho de gato que é lembrado uma vez por semana e que, por isso, anda encardido de ceroto, fedendo a pai de chiqueiro. Parece se enchapelar, também, quando dorme, se é que dorme, já que passa as noites tresvariando feito lobisomem. Querendo ver o cristão mais brabo do que siri na lata, é só, de longe, gritar peido de fiofó. De perto, não se recomenda, a peixeira rasga o buxo.

Filó, não precisa de muita sabença para entender que vem de Filomeno. Pedro Filomeno, é só o que se tem do nome dele, sem sobrenome, pois nunca pediu bença pai a um vivente que tenha deitado com a mãe em todos os anos de vida. Pera aí, não tô levantando falso a ninguém, não. Não juro em falso e é pela luz que me alumia que testemunho que a mãe do Pêdo foi igual a toda mãe, uma santa, um exemplo de pureza. Eu é que nunca vi ele pedindo abença a quem tivesse a figuração de pai, só vi a mãe lhe dando uns puxavantes na orelha de abano. E nem vou aperrear a pobre perguntando, já que deve estar no céu por uma hora dessas, zelando pela sorte do filho.

Esse Pêdo de cá tem muito a ver com o astuto herói d'além-mar Das Malasartes, vindo pra aperrear a meninada e azucrinar os incautos. Sei lá onde aprendeu, sei que canta, bêbado ou sóbrio, não se sabe diferençar um estado do outro, "chegou Payo de Maas Artes com seu cerame de chartes… Semelha-me busuardo viindo en ceramen pardo… log'ouve manto e tabardo”.

Ontem, vivia dos aposentos da mãe, hoje, da esperteza de filho da mãe. Inventa de tudo um quanto para levar vantagem e embolsar uns vinténs. Vive nas ruas, não tenho quem embalance o meu berço nem endereço, voo em pé de vento... Às vezes, se transveste de maluco, olha ali, bem ali, vê? Tá de chifres de bode e pés voltados para trás. Como faz isso, e eu sei? Sobre a cabeça leva uma máscara que a frente está nas costas e as costas está na frente. Se mexe para a frente parecendo que anda para trás... Cumassim? Ora, o sentido da frente tá pra trás e o rumo de trás tá pra frente. Um escandelo na frente e verso do ser humano é assimcumo. Vê os pés? Tem o calcanhar no lugar dos dedões e os dedões no lugar do calcanhar. é mágica da chinela de couro feita ao modo dele. Vai ali, cagado e cuspidinho, parecendo o capiroto.

Mal chegada a manhã, surgia como assombração no bilhar do Zé da Ema, uma bodega fuleiragem que tem uma mesa de sinuca, onde passava o dia todo faturando os cobres do de comer com as danações que aprontava. A contagem de pontos dos dados era uma delas. Jogava uma ruma de dados em cima da mesa, e perguntando quer apostar que conto tudo em um instante, desafiava uns e a outros? Que instante é esse, Pêdo, cai um preso à isca. Tu marca os minutos que quer, faz a escolha. Dou dez contos de reis que não conta em um minuto, se eu rolar os dados, topa? Topado, numa vista de olhos na cara dos dados jogados pelo adversário, tem tanto. em riba das buchas ele diz. Como, se nem contou... Pois conte tu, tá apostado, é de tanto a soma dos números nos dados... E dito e feito, o somatório é o que diz. Esses dados são viciados, se for e dobrar a aposta escolha outros dados e jogue. Outra arrumação de dados em maior quantidade é jogada no pano do bilhar e mal para, Pêdo anuncia tem tanto... E o acerto é comprovado mais uma vez...

Dia desses, inventou uma rifa, caída de imediato na boca do povo. A rifa tinha como brinde a ser sorteado entre os apostadores uma cabritinha e corria quando todos os pontos fossem vendidos. Anunciando a cabritinha, entortava o pescoço e piscava o olho, mostrando uma foto estampando a figura de uma moçoila segurando uma cabrita. Taqui a prova do prêmio, uma cabritinha de lei.

E quando a novidade chegou aos ouvidos de seo delegado prenda o Tadeu, Pêdo Filó teve que descarregar bem descarregadinho o caminhão de detalhes do que história é essa, seu cabra, mostrando quem era quem na rifa da cabritinha... Cabritinha é a da esquerda, mas também é a da direita. Cuma é, tu quer ser preso, cabra? Preso eu e mode de que vai aumentar o meu sofrer no xilindró? Fiz nada, não. A da direita que não tem nome de gente é cabritinha e a da esquerda, também, é cabritinha, sem ter nome de gente. Apelido dá nisso. E eu não apelidei nem uma nem outra. Desfaça o que é confuso com o pai, tá ele ali, e até comprou mais de número, sendo as duas cabritinhas dele e eu só ganhando comissão. E o padre? Levantando a sotaina, pegou no saco onde guarda as moedas, e num é que comprou dois pontos? Pêdo Filó , deixe de viveza, a foto tem dois lados, cara e coroa e na cara a cabritinha gente está à direita, na coroa, está à esquerda. É um vice versas danado. Intonce, vale a cara ou a coroa? Quem tá de brinde é a cabritinha, seu dotô. Qual delas, Pêdo Filó, já tô impacientado. Se empanzine, não, seu dotô, tome um refresco de maracujá, refresca os gorgomilos e acalma, pois que, eu já num disse? É a da esquerda, a quem pensou que é a da direita diga teve preso e o pai dela meta o cacete... Na filha do bode e não na cabritinha, disse baixinho, enviesando o pescoço, batendo o olho para quem estava perto. Mas, Pêdo, daqui eu vejo uma filha de mulher e daí você vê a filha de um bode... Seu delegado, e eu entendo lá de foto de gente e de cabra? Pedi a Zé do lambe-lambe, faz aí uma foto da cabritinha e cobra do pai, e aí ele fez o que fez... Se revelou com imagem de um lado e de outro, por que quer culpá eu da falta de quem fez a bestagem?

Depois de nada esclarecido e muita confusão, até o delegado, comprou o número descoberto, o vinte e quatro que o povo pra não ser confundido com Evita evita... Corre a rifa, e quede que alguém ganhou? Saiu um número dos canhotos colocados na urna, eu até quis ver quem era o sortudo, mas te lembra, não? Caiu naquele dia um toró de Noé que lavou o papel da rifa como se lava alma de santo? Foi assim que se perdeu o nome do ganhador... Mas tu que conta mais de cem dados num piscar de olho e sabe de cor e salteado o nome de todos os moradores da cidade, não lembra o nome da pessoa e o número de uma rifinha à toa? A agua foi tanta, tanta, tanta, que a enxurrada levou naquele dia junto com a urna a máquina do quengo, esta que depois encontrei por aí...

E todos perderam? Só vendo. Pêdo Filó se faz é de besta pra melhor passar, não leva vantagem dele o poderoso, o avarento, o orgulhoso e o vaidoso... Há muitos fiapos soltos no fio que leva ao fim desta historia, mas conta o povo que ele caiu no mundo com o apurado e as cabritinhas do retrato, deixando o pai roendo as unhas e os tolos lambendo os beiços. Daqui a pouco ele volta de cara lisa ou mascarado, um pé indo e outro voltando e o povo engabelado vai onda, se abrindo todo, ao ouvir mais uma digna do confrade Das Malasartes.