A chuva

Ele a amava. E não se importava se todos soubessem disto. Andava saltitando e cantarolando pelo apartamento. Chegou a dizer coisas incrivelmente tolas e sem sentido como: “viva” e “Iupiii”, enquanto preparava o café .

O cabelo, a voz, os olhos, o rosto e principalmente a forma como ela fazia uso de tudo isto o deixava fascinado. A paixão o tinha dominado e o deixava inacreditavelmente tolo.

Acendeu um cigarro, deu um trago e expirou, observando a nevoa branca que enchia o ambiente. Sentiu tanta satisfação naquele trago, que se envergonhou de sentir tanta satisfação.

Respirou profundamente deixando que o ar enchesse seus pulmões. Tossiu e lembrou que ela não gostava de cigarros. Sentiu uma falta de ar súbita. Visualizou seus alvéolos ficando ressequidos com a nicotina inalada.

“Ela não gosta de cigarros”.

Aquele pensamento circulou varias vezes por suas conexões neurais.Olhou para o cigarro em repouso no cinzeiro. Se distraiu por alguns segundos olhando a linha branca que subia em direção ao teto. “Mas é tão linda, não pode fazer mal algum.”( Quando pensou nisto, referia-se a linha branca de fumaça, e não á Marcelinha. Mesmo porque ela, a Marcelinha, era muito mais linda que qualquer linha de fumaça que subisse em direção ao teto.)

Tinha visto na televisão que a fumaça que sai do cigarro antes de ser inalada, contém noventa por cento de toda nicotina encontrada no produto. Tentou refletir – mas estava difícil, pois as suas conexões neurais estavam sobrecarregadas com o ir e vir do pensamento “Ela não gosta de cigarros.” O transito destes impulsos estava caótico. Parecia a Avenida Amazonas, entre Pç. Sete e a Raul Soares depois das seis da tarde.

Sabia que o seu raciocínio estava prejudicado pelo deslizar desordenado dos tais impulsos em seu cérebro, mas num esforço cognitivo conseguiu chegar a seguinte conclusão: Se a fumaça que sai do cigarro antes de ser inalada tem noventa por cento a mais de nicotina, então, obviamente, era melhor inalar do que ficar exposto a ela de forma passiva. É melhor ser um ativo – sem nenhuma conotação sexual – do que ser um passivo. Decidiu tentar convencer a Marcelinha de que a grande sacada era fumar e tragar bastante, não dando tempo para a fumaça circular por aí sem ser inalada.

Abriu a janela do apartamento para que o sol entrasse, mas estava chovendo. Não era uma chuva feia e desagradável, fria e gosmenta. Era uma chuva fininha e melancolicamente feliz. Quando abriu a janela esta chuvinha feliz molhou o seu rosto. Molhou também um advogado e um bombeiro hidráulico, nem tão felizes, que passavam na calçada lá embaixo. Molhou o teto de uma igreja evangélica e só não molhou o pastor e os fieis porque havia um telhado acima deles. Então ela escorreu por este telhado, caiu e rolou pela calçada, molhando os pés de uma dona de casa que voltava do Wall Mart. Molhou uma pasta , carregada de dólares, de um executivo de uma banco espanhol e o capacete de um motoboy que terminara de arrancar o retrovisor de uma Brasília com carburação dupla, estacionada logo atrás. (Os motoboys dizem ser intrigante e completamente irascível o comportamento do motoristas de Brasilias com carburação dupla, bem como o comportamento de todos os outros condutores de veículos leves. Eles alegam não ser justificável a irritação demonstrada por estes quando tem os seus retrovisores arrancados, uma vez que não os usam mesmo.)

A chuva era uma chuva competente e pragmática. Se tivesse chance molharia tudo e todos que encontrasse pela frente. Devia ser uma chuva destas que nunca estudou em escola publica, formou-se em alguma faculdade finaciada pelo estado e depois fez algum MBA no exterior. Era uma chuva que se formara na alturas, no topo das nuvens cúmulus e agora caia indiferente e implacável sobre quem estava embaixo, igual aos caras que nunca estudaram em escolas publicas, formaram-se em uma faculdade financiada pelo estado e fizeram MBA no exterior.

Abriu a carteira , pegou uma fotografia e ficou admirando aquele sorriso lindo. Aquele sorriso era como se... Tudo bem! Tudo bem! Não vou economizar palavras.

Aquele sorriso era fantástico, sensacional, extraordinário. O universo é algo fantástico, sensacional e extraordinário. E compreenda-se como universo tudo aquilo que os nossos cinco sentidos podem perceber e temos certeza que existe mesmo, e mais todas as coisas que os caras que fazem matemática e astrofísica em Cambridge dizem existir. É tão fantástico , sensacional e inacreditável que a gente apenas acredita porque os nossos sentidos dizem a toda hora que ele esta por aqui e não nos deixa em paz com toda a sua extraordinariedade. E acreditamos nos caras que fazem matemática e astrofísica em Cambridge porque se formos discutir com eles e apresentar uma argumentação razoável, eles nos farão parecer idiotas e ignorantes na frente de nossos amigos. O sorriso da marcelinha era fantástico , sensacional e inacreditável na mesma proporção que o universo, com a vantagem que voce não precisava discutir com os caras de Cambridge sobre isto. O sorriso da Marcelinha era incrível. Já viu um por do sol na praça do mirante do Alto mangabeiras? Já viu? Agora imagine que o John Lennon continua vivo e que os Beatles irão fazer uma apresentação única no próximo por do sol. Imaginou? Então imagine que os ingressos se esgotaram ha uma semana e que você é o único na cidade que alem do seu próprio ingresso tem mais duzentos e cinqüenta entradas, e que agora elas estao valendo o triplo do valor que voce as comprou. Era esta a sensação que aquele sorriso transmitia .

Naquele momento , o telefone celular começou a vibrar e a tocar a melodia de “Love me Tender”. Olhou para o visor e viu o nome dela piscando. Era ela! Em uma fração de segundos as cores do mundo ao seu redor que invadiam a sua retina e levavam até o seu cérebro impressões em technicollor, continuaram a fazer a mesma coisa, só que desta vez com tecnolgia digital via fibra ótica.

continua...

milimetro
Enviado por milimetro em 16/12/2007
Reeditado em 11/01/2008
Código do texto: T780129
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