Eu não era assim

Acordei diferente hoje, depois de uma noite mal dormida. Coisas estranhas roeram-me as entranhas. Enquanto preparava o café matinal, eu ouvia "quando entrar setembro e a boa nova se espalhar nos campos", na voz rouca de Beto Guedes, refletindo sobre as criaturas extraordinárias que me fizeram perder o sono. Acredito mesmo que os sonhos tenham significados em nossas vidas. Pode dar medo, mas é como um dedo em riste a nos admoestar , a desvendar segredos íntimos. Mesmo os mais suaves. Assim que terminei de coar o café, meus olhos encheram-se de lágrimas ao concluir o quanto eu tenho sido egoísta . Era isso que as imagens dos meus sonhos revelavam.

Tem gente que se ocupa trocando fraldas de idosos em asilos; doando parte de seu tempo para descascar batatas no Lar Maria Clara*; outros desperdiçam o precioso tempo distribuindo sopas aos moradores de rua; há quem doe tempo para tentar trazer de volta ao convívio social, pessoas submetidas aos grilhões das drogas, e até existem pessoas defendendo os desamparados cães e gatos; alguns querem proteger a fauna e a flora. E sem ganhar trinta moedas!!!

Enquanto isso eu fico aqui em meu mundinho. Minha casa, meu carro, meu celular, minha internet, meus discos. Durmo e acordo quando bem quero. De repente um demônio vem perturbar meu sossego, dizendo que lá, não sei aonde, há uma guerra e as pessoas estão explodindo e se fragmentando. Eu com isso?

Subitamente percebi que, nos últimos anos, tenho ouvidos moucos. E não enxergo. Houve um tempo eu não era assim.

A narrativa acima integra o meu livro de contos A Moça do Violoncelo.

* Asilo em Contagem