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Júlia desceu vagarosamente as escadas que davam para o sótão e parou por um momento. Lembrou-se de que, quando pequena, descia sempre correndo com sua boneca de pano em seu braço. Olhou para o grande espelho redondo, com uma moldura antiga esverdeada. Ali se sentava sua mãe, de frente para ele, e muitas vezes quando descia as escadas escutava sua voz cadenciada olhando para o espelho.
- Mãe, você esta rezando? – aquele ritmo harmonioso de sua voz sempre a fazia imaginar ser uma prece.
Sua mãe virava sorrindo para a ela com os olhos marejados sem dizer nada. Podia jurar que havia chorado.
O sótão era um ambiente antigo : velhos baús cheios de fotografias, uma caixa cor-de-rosa que guardava o vestido de casamento de sua avó, junto com algumas cartas de amor com a caligrafia impecável de seu avô! Havia um cheiro familiar, adocicado, que lembrava o doce de abóbora que sua avó fazia. Deveria ser os sachês que sua mãe fazia com cravo-da-índia espalhando-os pelos cantos da casa.
- Mãe, esse espelho
é
mágico? – perguntava.

Sua mãe, sem responder, sorria, fingindo arrumar os cabelos avermelhados com um olhar carinhoso. Como era bonita!  Mais tarde soube, pois foi deixado escrito em um diário, que aquele espelho tinha o poder de puxá-la para dentro dele, como se estivesse andando nas alamedas de sua alma.
Continuou descendo as escadas com essas lembranças. Já haviam retirado tudo do s
ótão, mas Júlia havia pedido que deixassem para ela aquele espelho. Contornou-o com seu dedo, tirando a poeira. Tirou-o da parede com cuidado, acariciando-o. Olhou para sua imagem no espelho e imaginou sua mãe caminhando, levando-a pela mão com sua boneca de pano, numa rua orlada de árvores, ouvindo-a murmurar aquela mesma prece.

 

Tema: O espelho do sótão (Conto)

 

 

 

 

Mary Fioratti
Enviado por Mary Fioratti em 13/06/2023
Reeditado em 14/06/2023
Código do texto: T7812731
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