O VENDEDOR DE ÁGUA

Às vezes, sonhar acordado é o mesmo que transitar pelos caminhos andados, os quais ficaram gravados na imaginação.

É com profunda melancolia que me recordo de meus idos tempos de infância, quando, mesmo antes do dia clarear, todos da minha família tinham que fazer de tudo para ter um dia melhor do que o ontem, pois a seca parecia não querer inexistir e, assim, os dias, meses e anos se sucediam tristes com o calor castigando a existência da vida. Foi um tempo de imensa escassez de alegria e de víveres.

Em pensamento retorno àquela época de difícil sobrevivência onde, em meio as dificuldades, cheguei ao extremo de comer feijão branco e chocolate em pó doados pelo governo americano que na forma de ajuda humanitária livrou-me da fome. Tudo isso por culpa de um tempo seco e desumano.

Foi naquela época de absoluta estiagem que o meu sofrido lugar emancipou-se politicamente - deixou de ser distrito - e com grande euforia o povo elegeu o seu primeiro prefeito municipal que, com coragem, procurou saciar a fome dos munícipes criando serviços emergenciais (quase que desnecessários) só para dar trabalho e alimento às famílias mais necessitadas, tais como: tapar buracos e cascalhar caminhos e estradas, limpar becos, ruas e praças da cidade, construir estradas de rodagem, podar árvores ribeirinhas, cavar tanques e fazer outros serviços prioritários.

A pequena remuneração era oferecida aos trabalhadores que trocavam por alimentos e mercadorias essenciais adquiridas pelo próprio governo municipal, tais como: feijão, fubá, farinha de mandioca, rapadura, carne-de-sol, açúcar, sal, fósforo, fumo-de-rolo e querosene. Se algum dinheiro sobrasse da despesa, ele seria totalmente entregue ao trabalhador que dali saia feliz.

Me lembro da falta de alegria nos rostos dos homens que trabalhavam e davam à fome um apelido jocoso chamado de BELOURA e, só assim, eles proseavam risonhos dizendo que, graças a Deus, não teremos mais beloura porque o prefeito não quer. E todos riam.

Pequenos negociantes iam aos locais da frente de trabalho levando no lombo de jegues e mulas algumas mercadorias para venderem aos trabalhadores, tais como: cachaça, cigarro, rapadura, farinha e água, isso mesmo: vendiam água. Água que eles iam roubar, muito longe, em barris sobre o lombo de animais com a finalidade de vender aos sedentos trabalhadores por preços exorbitantes

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 23/06/2023
Reeditado em 04/09/2023
Código do texto: T7820583
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