E pó: péia

Contanto que haja dinheiro no bolso, debaixo de chuva ou de sol, segunda-feira ou sexta, não importa. Lá se vai ele veloz, olhando sempre pro chão, na ida e na volta, cabeça baixa, remexendo lixo, chutando lata, catando guimba, investigando com perícia cada saquinho caído. E vem medindo a rua, sem nem se dar conta do que estava à sua volta. Suado, de pupilas dilatadas, um cigarro aceso na brasa do outro; o que faz, no máximo, por cautela (e antes de subir), é olhar pros dois lados antes de atravessar, nada a ver com o conselho de mãe, mas pra saber se os vermes, a polícia, está por ali.

De passo largo sobe, coração na boca, se tiver fila um Deus-nos-acuda. “Cai pro canto, cai pro canto! Vem viciaaadôô!”. E se joga no meio da massa, caído pra esquerda, de ouvido na direita e atenção no vapor, se babar: o beco de lá ou de cá a melhor opção? O povo se espreme, que ninguém é bobo de desfazer ou de furar a fila, ele mesmo já viu um monte tomar surra de pau, de fio, por menos. Pé após pé na marcha dos desesperados. Arriscaria dizer até um bailado, naquele arrasta-sapatos, dois a frente e pára. Daí é separar o dinheiro, moeda nem pensar, três de dez, trinta reais, se possível, mais três pra escolher um servido.

- De quanto playboy?

- Três. De dez.

- Vai dá um real pro amigo fortalecer um servido?

- Pô, só tenho o da passagem...

- Se adianta, se adianta.

No dente o saco se rasga, deixa a língua e o dente dormentes, com todo cuidado pra não cair nada. Agora é hora de desviar dos que, sem dinheiro, ficam zumbizando, fazendo quase de tudo se duvidar, por mais um tequinho. O pensamento já desordenado, faltando concentração, e joga na nota, ou no azulejo do boteco, ou vai no saquinho mesmo, pra não perder tempo. “De Kombi ou de ônibus?” – é a frase ferroando a consciência, que no embalo do efeito começa a pregar peça, dar depressão na moral e pressão no alto do tronco, o ar rarefeito na mucosa anestesiada.

Entra e sai de tudo quanto é tipo, de motorista de ônibus a gestante, gente comum e gente nem tanto, conhecidos e estranhos. Conta o dinheiro no bolso que, é claro que tinha, de dificuldade já chega o acesso, o terror de ser pego, essa ciranda terrível do vício. Agora, não é o caso, mas um dia foi de sair sem um puto, tendo de pedir favor a uns, que diferente dele, nem segundo grau tinham. Humilhação é estar à mercê desses que são flanelinhas, balconistas, porteiros, só quem sente na pele pode dizer. Vai ver é a vingança contra a classe média, essa caspa do Diabo, de inverter a ordem, virar mundo.

Vai que vai, rente e afiado, mais um, mais outro, tomar flagrante é que não. Abre e joga no nariz, sem pudor, onde for, bebe mais, conhaque com mel, catuaba, pura. Nariz empapado, fungando sem parar, respeito pro espaço, inibindo a norepinefrina, serotonina e dopamina, euforia sem fim. Mata o tempo, mata a vida, de vez em quando lembra da mãe, da família. Se vão a tarde e a noite, e a madrugada invade sem avisar. Aí se arrepende, jura que depois dessa vai parar, destrancar a faculdade, botar seriedade na levada, que deste jeito não tá dando e como seria difícil pro pai enterrar o filho e os comentários, alvo fácil, do resto.

Seis horas da manhã e o ponto cheio de gente indo trabalhar. Se safar é regra, acontecendo de ganhar dura, não tem nada, mentir é que não, ninguém quer ser esculachado. No apartamento todo mundo deve de tá acordado, chegar assim... Fazer o quê, tem remédio não, é encarar e agarrar de frente.

Espera.

Só mais uma cerveja e o finzinho que tá no bolso, se rolar uma intera dá pra outro, que se dane, deve nada a ninguém mesmo, deve não.

Douglas Evangelista
Enviado por Douglas Evangelista em 29/11/2005
Reeditado em 05/12/2005
Código do texto: T78345