NO ESPELHO

NO ESPELHO

-CONTO-

O vento sopra forte lá fora. As cortinas das janelas balouçam, azucrinadas com o silvo forte que inunda meu quarto. Embora chova torrencialmente há algumas horas e a temperatura esteja negativa, sinto terrível calor, meu corpo sua. Verdade que é um suor gélido, porém dentro de mim há fogo em brasa. Posso até sentir as labaredas consumin-do meus órgãos. Na verdade, estou farta de mim e me deixo incendiar, quiçá em busca de deletar os recalques que me dominam. Não me suporto mais! Minha consciência es- tá hipnotizada diante do desconhecido. Já não durmo. Não sonho. Sou vigília...

A noite apenas se inicia. Minha casa está em silêncio. Somente a natureza derra- ma seus folguedos perante as brumas da solidão. Sou vítima e, simultaneamente, teste- munha dos miasmas que invadem o tempo, a essas alturas congestionado pelo trânsito impermeável dos fenômenos que alumiam e gritam, sem eco, pelos quarteirões notur- nos. Mazelas inexpugnáveis adentram dentro de mim e meu âmago sofre com os torve- linhos que se agigantam e me tornam uma mulher inexorável e, também, ortodoxa, sem o apetite que me poderia fazer-me lutar e tentar libertar-me dos grilhões que me ator- mentam...

Chega a madrugada. Para mim, o instante é o mesmo, minha configuração interior não sofre mutações. Leio meu raciocínio e me vejo alquebrada por todos os lados, totalmente isenta, entregue aos desígnios dos desejos que fulminam minha alma. Estou só. Ouço meu coração destoante, minha pulsação quer saltar pela boca, já envenenada pelas palavras inimagináveis de um ser que perdeu a decência de si mesmo. Estou trancafiada em mim, exonerada dos preceitos vitais. Belisco-me, jogo minha cabeça de encontro à parede, na tentativa, talvez, de despertar-me deste aluvião deserto que em mim se instala. Quem sou eu? Onde deixei minha identidade? Nos caramanchões das horas? No tédio inflável dos muros da vergonha? Não sei. Nada posso diagnosticar de mim mesma.

Tenho 32 anos. Meu nome é Vivian. Será? Sou solteira. Resido solitariamente. Perdi o miserável emprego que tinha. Não havia vícios em mim. Agora há. Contudo não são drogas indecentes. Cigarro e uísque. Fumo um atrás do outro. Bebo goles homéricos de uma bebida barata. Não tenho amigos. Todos saltaram em seus balões e me abando- naram na contramão do destino. Os últimos que tive me sugestionaram a procurar uma psicanálise. Acham eles que estou enlouquecendo. É possível. Como disse, em nada posso me diagnosticar. Não sei medir meus alvitres, não sei compreender a desventura da infelicidade. Estou prostrada dentro dos arreios de minha própria ousadia. Não! Não irei em busca da psicanálise. Descobri uma psicanalista dentro dos meus próprios apo- sentos e é a ela a quem vou fornecer meu dossiê. Lá está ela, do outro lado, no espelho da minha cômoda. Tão quanto eu, tem um cigarro nos lábios e um copo de uísque às mãos.

Olho bem em seus olhos. Estão fundos quanto os meus. Cabelos desgrenhados, corpo desnudo. Positivamente também se chama Vivian. Também tem 32 anos. Pare- ce-me a pessoa ideal para um desabafo e inicio minha ladainha. Sabe, Vivian, desde pe- quena que sofro dos maldizeres da vida. Meu irmão mais velho dizia que eu era bastar- da, que havia nascido do peido de uma vaca. Morávamos num sítio e quantas vezes me sentei bem em frente à vacaria a esperar que as vacas peidassem e eu pudesse ver nascer algum bebê. Quão tola eu fui! Este meu irmão, mais tarde se deixou envolver no mundo dos entorpecentes e não saiu mais de lá. Meus pais pouco se incomodavam conosco, viviam a trocar farpas entre eles, totalmente ausentes, deixando-nos viver livremente, sem qualquer orientação para a vida. Foi um tal de salve-se quem puder e tanto eu quanto meu irmão nos perdemos nos precipícios de um mundo cruel. Cresci azougada, pois não podia ficar parada, havia de estar aprontando alguma. Cheguei à adolescência, bonitinha e charmosa, bem feita. Tal fato me trouxe desilusões, porque acreditava piamente nos rapazes de minha idade e das moças, idem. O produto dessa minha crença infalível foi a entrega total do meu corpo e todos dele se aproveitaram. Tornei-me, então, uma mulher muito fácil de ser conquistada. Lembro-me que, depois de me possuírem, todos me deixavam ao relento. Por isso, não há amigos em meu derredor. Verdade que conheci novas pessoas, entretanto logo que me conheciam, tiravam partido de mim. Quantas vezes não me vi encrencada com a polícia por haver roubado alguém ou alguma loja? Perdi a conta... Um instante, Vivian, preciso pegar de algo dentro de minha bolsa...

Veja, Vivian, é uma arma de fogo. Tirei às escondias de um policial que se deitou comigo e bebeu até entregar-se a um sono reparador. Assim não houve dificuldade de tê-la aqui agora. Sabe o que vou fazer, Vivian? Atirar em você, porquanto percebo que

em nada me ajuda, só faz repetir minhas palavras e meus gestos. Você me parece louca e é igual a mim, decerto tem os mesmos desajustes que possuo. Ih! Você também tem uma arma tanto quanto eu... Como a conseguiu? Roubou-a da mesma forma? Calma, mais alguns segundos, dou-lhe esta chance. Não atire antes, Vivian, ainda tenho o que dizer-lhe. Pense comigo: valeu viver até agora? Para quê? De nada serviu a vida para nós, fomos esfaqueadas pelas traições, fomos atiradas aos poços de lama que nós mes- mas cavamos, verdade absoluta. Não há mais nada a fazer, Vivian, mais nada. Portanto, adeus, provavelmente um dia nos reencontraremos, não sei onde, nem quando. O tempo é nosso inimigo, deixou-nos envelhecer dentro da imundície que provocamos em nossas existências. Exatamente é assim o final das vagabundas...

E atirou contra o espelho que se fez em pedaços. Depois apontou para a própria cabeça e deu o tiro de misericórdia, mas antes ainda houve tempo para dizer: Lá vou eu, Vivian, no além acertamos nossas contas!

Ivan Melo
Enviado por Ivan Melo em 15/07/2023
Código do texto: T7837671
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