Livrarias de mim

“Livrarias de mim”

- Oh! Raia o sol, suspende a lua. Olha o palhaço no meio da rua.

- Oh! Raia o sol, suspende a lua. Olha o palhaço no meio da rua.

Carnaval em São Luiz do Maranhão. Rua do Sol. Em direção a Praça João Lisboa. Vem o corso. Ou entrudo, sei lá. O negócio é que aqui se joga maisena na cara. E eu fascinado pelo fofão, toco em sua boneca maldita. E levo uma mãozada de farinha de trigo, da pura. Não vejo nada. Minha boca fica cheia. Meu corpo zonzo.

Mãos suaves me guiam. Uma vozinha diz:

- Bora lá, meu querido. Vou lavar teu rosto.

Estou debruçado numa espécie de aquário de água doce. Um tanque. Lavo-me do pescoço para cima. Meus cabelos estão mexidos. Meus olhos queimam.

- Eu sei, tá ardendo que só.

Então eu levanto lentamente a cabeça e abro as portas da esperança. Era ela, somente ela eu gostaria de ver assim tão de perto. A menina da livraria da esquina, filha do Seu Borges. Seus faróis verdes assim mirando a centímetros da minha boca eram a tentação maior. Por que será que as boas estórias vêm sempre acompanhadas dessa cor? Ouvi ao longe Maísa cantando, “Meu mundo caiu” e não teve jeito. Fui beijá-la. Recebi um discreto safanão.

- Deixe de gaiatice. Tu estás bem?

Nem tentei novamente, na minha adolescente precipitação recolhi-me e disse.

- Eu estou ótimo. Vamos pular?

- Não, fique aqui mais um pouquinho. Dê-me cá esta bexiga, tu não vais precisar dela.

Um balão cheio d’água. Ela jogou longe e com ele foram-se todos os meus planos. Não sabia o que falava e nem o que fazia.

Menino-homem no Maranhão selvagem. Década de setenta. Não estava acostumado com isso. Com mulheres de pele escura e cabelo liso. Com o sotaque correto e estranho. Com o cheiro de mar que ela carregava entranhado em suas fitas. Fitas de cabelo, de vestido, de me fitar assim daquele jeito que somente as grandes mulheres o fazem. E eu ainda não havia sido derrotado daquela maneira. Percebi que era um arremedo de conquistador. Um bobo.

Disfarcei. E como estava nos fundos da casa, pude reparar na imensidão de livros que perpassavam por detrás das costas dela. Oras, além do óbvio tesão hormonal típico da idade, outra coisa me atraía por demais. A literatura. Poxa, eu estava num paraíso e não sabia. Levantei-me rapidamente e parti em direção ao novo alvo. Que por certo não se recusaria de modo algum.

- Aonde vais?

- Volto já, vou buscar maracujá.

Não teve graça. Mas ela acompanhou-me. Vi pilhas de autores. Franceses. Moravam juntos Sartre, Simone, Baudelaire, e outros tantos. Depois outros bem separadinhos. Eram todos maranhenses. Gonçalves Dias, Aloísio de Azevedo, Josué Montello e até o político José Sarney, que eu nem sabia que escrevia.

- Não bole nesses não, que o meu pai tem ciúmes.

Eu fiz de mula e peguei logo o primeiro que minha mão alçou. Era um poema de Mallarmé.

Toi qui soulages ta tripe,

Tu peux dans cet acte obscur

Chanter ou fumer la pipe

Sans mettre des doigts au mur

Apesar de estar apenas no segundo ano de francês da Alliance, pronunciei direitinho todas as palavras. E, além disso, as interpretei de maneira erótica, subliminarmente ao texto. A mãe dela chegou.

- Temos aqui um poeta?

- Longe disso, minha senhora. Musa vejo à minha frente, mas em minhas mãos somente carrego o que não consigo dizer.

Um silêncio sepulcral. Acho que exagerei. Mas toda boa mãe percebe o que é bom para a filha.

- Ora, que beleza. Vens comer um casadinho. Como é teu nome?

- Alencastro.

Eu não sabia sequer o nome da filha e já fui dizendo o meu, na maior intimidade. Um verdadeiro palhaço. Sentamo-nos em uma mesa de ferro, com cadeiras velhas e descascadas. Deveriam ter sido ricos, um dia. Ela puxou conversa. Falou de músicas, de poesias e eu ... adorei!

Depois de um tempo percebi que tinha deixado de lado a minha linda maranhense e apenas conversava com a sua genitora. Talvez tivesse sido esse o motivo da minha aprovação. Repentinamente falou.

- Está escurecendo, teus pais devem estar preocupados. Tu não és daqui, ouvistes? Minas?

Eu detesto que o meu sotaque seja confundido com os nossos sábios vizinhos. Mas respondi.

- Meu pai é de Goiás e minha mãe é daqui. Nasci em Goiânia.

Não carreguei nos erres, pois detesto. Mas também não escondi a minha origem.

- Volte amanhã, para o almoço.

Já eram quase seis e meia. E o sol se põe cedo em São Luiz. Nem deu tempo de dizer que os meus pais ficaram e que eu passava férias com a minha prima Amélia Virgínia. Que era como se fosse a minha irmã mais velha. E o seu marido, um amigão. Eles realmente deveriam ter ficado a minha procura, mas Alim viu a cena inicial e explicou bem as coisas.

- Ele deve estar de saliência...

Bem que eu queria. Voltei correndo para o carro e inventei um monte de cenas eróticas pro meu amigão. Menino é meio besta, né? Mas a dúvida me dilacerava. Seria domingo de praia, depois a matiné no clube Jaguarema. E eu ali, no centro? Com a filha dos Borges, que eu nem apertei? Sendo que na praia já tinha uns esquemas montados e no clube seria melhor ainda... Não sei se foram os exemplares de capa dura e cheios de lombada ou a mocinha dura e também plena de curvas. Retornei célere.

O prato era arroz de cuxá. Para quem não sabe, uma iguaria local. Feito de uma planta chamada vinagreira e com uma coloração de vômito que espanta qualquer pretendente. E camarão no meio. Com minha avó Mariana aprendi a comer o crustáceo de maneira primitiva. Com casca, cabeça e rabo. Não me fiz de rogado e entubei a gororoba. No começo eu senti certo repugno, mas depois, foi dos deuses! Delícia. Servido de um bom guaraná Jesus e uma Cola Geneve, só faltou eu arrotar na mesa.

Como eu não estava nem aí, esbaldei-me. Novo ponto para o rapaz aqui. Conversei com a mãe, com o pai, com as irmãs, até com o –pretenso- cunhado. Ela mesmo, pouco disse. Servida a sobremesa de creme de bacuri, eu até poderia ir embora. Mas não fui.

- Queres ver a nossa biblioteca particular?

- Claro que sim.

Pensei que todos me acompanhariam, mas só ela foi. Seu cabelo estava preso, rabo de galo alto. Sua nuca era a sucessão de fios simetricamente desenhados, mais linda que eu já havia visto. E em muitos anos eu só veria igual no filme “Amélie Poulain” com a Audrey Tautou. Mas ela era real. Estava ali, e não numa tela. O enredo era lento. Pegou um exemplar ao acaso. I - Juca Pirama.

Assim o Timbira, coberto de glória,

Guardava a memória

Do moço guerreiro, do velho Tupi.

E à noite nas tabas, se alguém duvidava

Do que ele contava,

Tornava prudente: "Meninos, eu vi!".

Esse era o último verso, que me marcou. Essa história de pai e filho sempre me tocou muito, já que meu pai era 50 anos mais velho que eu. Discorri um pouco sobre isso. Ela chorou, seu pai também idoso. Ela, a caçula de seis.

Sentei-me num Josué Montello. Eram “Os Tambores de São Luiz”, um calhamaço. Elogiei Gonçalves Dias, e até inventei que conhecia Caxias, sua terra natal. Mas o que mais admirava nele era seu conhecimento de línguas, escrever um dicionário de Tupi-Português não é coisa fácil. Tradutor de alemão. Ela ouvia-me com zelo. Lentamente sentou no meu colo e um sabiá assoviou ao longe.

Achei o gesto tão natural que sem malícia a envolvi com meus braços, por trás. Como eu era bem mais alto do que ela, os rostos ficaram no mesmo nível. Apoiei o braço no monte de livros do padre João Mohana. Acho que eram os “Dez Mandamentos sobre o namoro” um texto dele. Eu estava ali rompendo com todos... Médico, psicólogo, musicista, o sujeito era forte.Talvez eu fosse tudo isso um dia, menos padre... Dessa vez eu tinha certeza que a beijaria. Ah, confesso que não tinha, não.

Girei meu corpo para direita e prendi a respiração. Fechei meus olhos e esperei. Nada aconteceu. Abri rapidamente e ela estava ali, também com as pálpebras cerradas. Aproximei-me levemente e ... pronto. O pôr-do-sol prateado da praia do Olho D’água se repetia naquele beijo crescente. Marés de sete metros. Odor de sal. Gosto de mulher fresca, in natura. Desejo de cantar.

Desta vez não apareceu ninguém. Mas ao invés de travar-lhe o corpo magro e forte de jaçanã, eu me debrucei sobre ela. Leves como éramos, caímos. Espalharam-se todos os belos exemplares. “O Cortiço” cai logo na página em que Rita Baiana, bem... em que o lundu come solto. E a dança é boa. Aluísio de Azevedo conhecera o mundo, era diplomata, eu o admirava pelo mundanismo dos textos e vivência clássica.

Aquele barulhão de coisas pesadas e poeirentas caindo, não atraiu ninguém. Como nos bons contos, os deuses conspiram. Estatelado no chão eu via suas coxas de pelos dourados e retos. Não consegui tirar o olhar dali. E ela percebeu. Peguei o Ferreira Gullar que jazia meio distante de nós. E foi a minha salvação. “Poema Sujo” era novinho. Uma das primeiras edições, do ladinho dele, o “Dentro da Noite Veloz”. Fui ávido ler:

Poema sujo

eu não sabia tu

não sabias

fazer girar a vida

com seu montão de estrelas e oceano

entrando-nos em ti

bela bela

mais que bela

mas como era o nome dela?

Eu preferiria os versos anteriores que são mais sensuais e até fundamentais, mas fui devagar. Ela leu comigo mais umas estrofes e depois disse outras de cor. Ela era culta! Aí, a inteligência junta com o desejo, só dá coisa boa...

Abracei-a como caranguejo. Com todos os meus membros. Desta vez beijei amassando. E fui retribuído com uma mordida no lábio inferior. Não parei mais. Rolamos entre páginas e páginas abertas. O vento encanado das próximas ruas, do Passeio e do Alecrim só aumentaram meu ânimo.

Nos amamos entre autores ludovicenses e ouvindo João Donato e um pouco do reagge incipiente. Durante todas as férias. Durante todos os movimentos das marés. Pré-amar, baixa-mar. Tudo-amar. O Rio Bacanga e o Anil se juntaram ali. Corremos desde a Ponta D’areia, passando pelo Farol de São Marcos até nos atolarmos nas dunas do Calhau. Vimos a lua descer e subir tantas vezes que até pensamos que era somente para nós aquele espetáculo ao lado da ponte.

Hoje aos 42 anos voltei lá. Passei pela rua, mesma casa. Outra cor, somente. Tenho filho e filha. Estava com o meu primogênito. Como não resisto a uma livraria, entrei. Ele ficou na porta olhando o chão de paralelepípedos. De súbito um carro enorme desviou do meu e passou jogando lama em meu garoto. Sujou seu rosto lindo. Uma menina acudiu. Fiquei tão assustado no instinto de protegê-lo que não me vi entrando dentro da casa para lavar-lhe o rosto.

Deixei ele lá com a mocinha e me virei para a nossa maravilhosa biblioteca privada. Agora maduro, não peço licença, entro. Haviam mais volumes. E um espaço vazio. Só um livro. O meu, de poemas. E algumas reportagens sobre mim. Meu coração disparou e vi ao longe uma bela senhora de cabelos pretos e longos ajudando a filha a lavar o mocinho.

- És João Mário?

- Como é que você sabe?

- Eu sei muito sobre ti, li nos poemas do teu pai. Continuas nadando?

- Hoje de manhã atravessei o Rio Preguiça, em Barreirinhas.

- Vês se não vais morrer em Atins, como Gonçalves Dias, eihn?

Era o código. Ela lembrou. Sabia de tudo. Amores verdadeiros não esquecem, nem os detalhes. Toda a literatura consumida naquele verão retornou. Meu rosto ardeu mais do que meio-dia nos Lençóis, ao rememorar a noite em cambraia de linho que os pais dela nos deram, ao sair para a missa.

- Ainda não lembro seu nome.

- É Maria. Maria Clara.

- Ah, sei.

- É o nome da minha irmã! Que massa! Vocês se conhecem?

-Ah, filho. Ah, Maria Clara. Anos passam, livros vão.

- Mas eu sempre soube que jamais, livrarias de mim...

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 19/12/2007
Código do texto: T784221
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