CAPITULO I - ( A COBRANÇA)

PARTE DO LIVRO: A COBRANÇA (que um dia publicarei).

1ºCapitulo

Pela manhã olhei o quarto e como sempre, somente eu estava lá. As flores no pequeno vaso na penteadeira, o velho computador desligado, os tapetes já empoeirados ao chão, a janela deixando um feixe de luz ressoar, tudo era tão normal e rotineiro, tão comum e igual a todos os dias. Meu coração batia compassadamente. Meus olhos corriam os quatro cantos do quarto ligeiramente e me faziam pensar coisas distintas ao mesmo tempo.

Sentei-me na cama e, de repente, surgiu em mim um profundo desejo de parar de respirar, de cair na cama olhando o teto e ali permanecer os segundos da minha vida. Levantei-me devagar, passo a passo cheguei até a porta, abri e senti um vento que não apenas balançou meus cabelos, mas percorreu minha alma. Fechei os olhos e ao abri-los, foi um relance, me vi noutro lugar. Havia flores e folhas secas que caiam como flocos de neve a minha volta. Havia pássaros e borboletas que voavam ao meu redor. Havia o som de um piano tocando longe, fundo, uma música bela com um som fúnebre. E eu me deixei levar pela emoção, seguindo cada nota.

Andei naquele mundo e tudo o que via era uma natureza calada. Segui a música e ela era o único som que ali se ouvia, pois nem mesmo os pássaros deram o ar de seu canto. A minha direita havia uma casa velha e abandonada, a minha esquerda um caminho que dava em um portão de madeira e a minha frente grandes portas de um celeiro. E dali vinha a música.

As portas estavam fechadas e ao abri-las vagarosamente deparei-me com cacos, estilhaços, retalhos e fragmentos de uma vida. Caminhei sob as folhas secas ao chão que estalavam a cada passo meu, as palhas jogadas, lembranças de uma família em fotos que ali estavam jogadas, algumas rasgadas levando a aparência do tempo - pó. Havia uma foto em especial, onde percebia-se rostos felizes de uma família unida pela paz e por algum segredo, pelo amor e pelo medo e eu, apenas observava com atenção toda a história destas pessoas representadas pela imagem.

Olhei a frente. O piano ainda tocava porém não era tocado. A música soava divinamente e as teclas afundavam sem que ninguém fizesse isso. Espantei-me, mas senti uma paz imensa naquele lugar.

Sentei a frente do piano e ele parou de tocar imediatamente, era como se ele tivesse me visto, pudesse saber que eu estava ali e sem mais, nem menos cessou sua canção. Fiquei olhando e passando a mão sobre suas teclas sujas, olhei sua estrutura já corroída pelo tempo e parei por instantes com as mãos postas sob o mesmo banco em que eu estava sentada.

De repente, um vento entrou pelas portas e janelas levando todas as folhagens aos ares, a foto que tanto observei voou alto e caiu sob o piano e senti um frio correr minha alma e uma lágrima caindo sem que eu a quisesse naquele momento. Fechei meus olhos, não pelo vento, mas porque naquele instante não consegui suportar olhar a foto, senti-me estranhamente culpada por algo que nem mesmo daria para entender.

O vento cessou, abri meus olhos desviando o olhar para as janelas e levantei-me. A canção retornou rapidamente, porém era diferente, o seu compasso era agitado e intenso e a teclas afundavam com toda a força, como se toda a energia daquela foto estivesse levando o piano a ter tanta intensidade em sua música.

Não suportei continuar ali. Corri até as portas com um fôlego que até minha alma desconhecia, mas antes que eu saísse do celeiro as portas se fecharam. A canção ficou mais alta e então senti medo. Olhei pelas janelas pensando em uma maneira de chegar até elas e sair dali, e vi o céu escurecendo. Vi um corpo se formando em flashs na frente do piano e este corpo era que o tocava. Havia mais alguns flashs ao canto e eram corpos de duas crianças abraçadas com um homem e uma mulher. Um senhor e uma senhora estavam abraçados no meio do celeiro na mira de um corpo extremamente alto, capa longa e negra, e de uma forma que apenas sua imagem já causava dor.

Virei-me batendo na porta tentando achar uma forma de sair de todo aquele pesadelo. E então ouvi uma voz de criança gritar meu nome, pedindo ajuda. Aquela voz... Eu reconheci aquela voz. Foi neste instante que cai batendo a cabeça em uma estrutura de madeira que ali estava. Permaneci caída por um longo tempo, adormecida em sono e adormecida pela louca surealidade em que havia entrado.

Algumas vozes ouvi ao fundo, então abri meus olhos lentamente percebendo que estava no mesmo lugar, mas o lugar não era o mesmo. Tudo estava arrumado, havia o canto dos pássaros ao fundo. O piano estava no fundo do celeiro, coberto por um pano protegendo-o. Era estranho ver que a loucura estava cada vez maior.

Abri as portas com vagareza e notei que aquele lugar era uma bela fazenda, viva e com um perfume aconchegante... Crianças corriam pelo gramado atrás dos patos e galinhas e os cachorros corriam atrás delas. Comecei a caminhar e as crianças me avistaram, o menino parou na minha frente e a menina correu para dentro da grande casa chamando pela mãe.

Eu não sabia o que fazer dei alguns passos para trás, outros para os lados. O menino me olhava fixamente, e nada dizia.

Logo a mãe dos garotos apareceu, me perguntando então quem eu era.

Disse meu nome engasgando porque mal conseguia pronuncia-lo, mal conseguia parar em pé; era tudo muito estranho, parecia-me um tempo antigo.

A mulher se aproximou e me olhou com carinho nos olhos, gritando em seguida pelo seu esposo. Passou suas mãos sob o meu rosto limpando o sangue que escorria do corte em minha testa. Seu esposo apareceu abraçando-a e perguntando o que havia acontecido.

Contei-lhes tudo e todos riram de mim, como era de se esperar, porém o menino que ainda me olhava fixamente não demonstrou riso nem graça, apenas se virou entrando em sua casa.

A mulher estendeu sua mão e me chamou para entrar, com um sorriso que parecia condenar-me como louca. Seu esposo foi tirar o leite das vacas e eu fiquei sentada numa velha cadeira com as mãos deitadas sob as coxas, observando aquela cozinha, simples, mas aconchegante.

O cheiro era magnífico. Olhei a mesa, já posta, havia tantas coisas, tantas opções. Sentei-me.

Observei por muito tempo as panelas negras e as galinhas que ciscavam próximo a porta.

A senhora, lavava a louça calmamente, virou-se dizendo para que eu me servisse e me sentisse à vontade. Servi-me de tudo um pouco, minha fome era algo espantoso. A ouvi dizer que ali eu poderia ficar o tempo que quisesse. Sorri e continuei a me deliciar com a fartura daquela mesa.

- Esta vendo esses alimentos, Mel?

- Sim! Estou!

- São todos aqui da fazenda. O queijo está fresco, fiz ontem a tarde! O suco de laranja é das laranjas que tem lá no fundo. O café foi colhido aqui mesmo na fazenda, mas o cafezal fica um pouco longe em uma outra parte da fazenda.

Enquanto ela lavava sua louça, me contava as suas histórias, levantava o braço na direção dos lugares de onde falava e eu seguia com os olhos tentando ter uma noção onde ficavam aqueles lugares. Tudo ali, era fantástico.

As crianças entraram correndo na casa, espalhando sujeira por todo lado, passaram por mim e o menino novamente parou na minha frente, fixou-se em mim por um longo tempo.

- Olá garotão! Como se chama?

Perguntei, sem resposta!

A senhora virou-se o repreendendo e ele disse:

-Francisco.

A pobre senhora tinha um ar tão bondoso que me surpreendia, lavava a louça e falava comigo como se já fossemos amigas e eu na maior parte das vezes apenas ouvia, pois ainda permanecia engasgada com tanta surrealidade e anestesiada com a hospitalidade de pessoas que não me conheciam, e que além disso, tinham tudo para crer que eu era louca. Minha mente vagava muito além daquele aconchegante lugar.

Passou se algum tempo, curto, mas cansativo e o marido daquela senhora chegou com duas baldes de leite. Colocando-lhes na mesa disse para que Antônia... - O espírito bondoso que me acolheu, aquela senhora maravilhosa... - Os colocasse em garrafas. Após ela colocar o leite nas garrafas ele beijou Antônia e saiu dizendo que iria dar banho em um dos cavalos.

Perguntei à Antonia o nome de seu esposo e ela então me falou:

-Jonas. Meu anjo amigo e fiel companheiro.

Percebi que alguém se aproximava, então, olhei para trás, vi um senhor que caminhando vagarosamente me observava aparentemente intrigado com a minha presença.

-Quem é essa bela jovem? – perguntou ele, sorrindo.

Sorri com a pergunta feita tão carinhosamente, respondi e de repente, seu sorriso se apagou. Olhou rápido para Antônia e ela para ele, ela sorriu e juntamente com ela ele voltou a sorrir.

- Belo nome, Mel... Mel é doce... E você é doce como o mel, prazer, meu nome é Silvano! – sorrindo, me disse essas belas palavras, deu-me a mão em forma de cumprimento e depois foi até Antônia, abraçou-a e a apresentou como filha. Não tive outra reação a não ser continuar sorrindo carinhosamente.

Senti que necessitava sair dali aquele instante, e pedindo-lhes licença, sai caminhando até a sala, onde me deparei com uma parede de retratos... Havia retratos por todos os lados... Imagens e fotos... Lembrei-me então da foto que vi naquele estranho momento no celeiro, e iniciei uma procura por ela. Senti-me idiota ao não encontrá-la. Sentei-me no sofá... Completamente atordoada por tudo o que me acontecera até ali.

Uma musica linda começou a ser tocada, e ela não me era estranha. O som do piano embalava minha alma e eu tentava recordar de onde a conhecia, então me lembrei que era a mesma musica do celeiro. Comecei a segui-la.

Por um longo corredor, eu caminhava devagar, e ali eu ouvia cada vez mais alto a bela canção. Parei em frente à última porta do corredor, e ali ouvia-se a musica perfeitamente, em alto e bom tom.Observei a porta, seus cantos eram arredondados e sua maçaneta me refletia. Estiquei meu braço e segurei com delicadeza a maçaneta para evitar fazer barulho... Abri a porta devagar.

Parada ali mesmo, vi uma jovem tocando o piano. Sem que ela percebesse a minha presença, continuou tocando e eu observava a sua simplicidade. Usava um vestido florido, delicado e solto em seu corpo, os pés descalços eram pequenos e seus cabelos pareciam ouro.

Ela continuou ali sentada sem me ver, tocando sua canção. Eu ali parada fechei meus olhos e me deixei levar pela musica.

Alguns segundos se passaram de forma lenta e eu percebi a musica cessar sua harmonia. Abri meus olhos e a garota que estava tocando olhava para mim, que além de estar de olhos fechados, elevada pela canção, sorria misteriosamente.

- Quem é você? – Ela me perguntou.

De repente me senti reanimada e com dois passos a frente, respondi meu nome.

- E o seu? – perguntei sorrindo, envergonhada.

Ela me olhava de uma forma assustadora, parecia me odiar... Retrocedi os passos e voltei até porta...

- Maitê! – ela me respondeu friamente.

Sem graça elogie-a pela canção e pedindo desculpas pela intromissão sai rapidamente.

Parei no corredor olhando de repente algum ponto fixo. Ali fiquei por algum tempo encostada na parede pensando nas loucuras daquele dia, pois até então tudo o que eu mais fazia era pensar. Fechei meus olhos passando a mão sobre eles retirando as lagrimas persistentes.

Num repente, senti alguém se aproximar, senti o calor e o perfume de outra pessoa ali perto.

Abri meus olhos, Francisco estava parado na minha frente e me observava. Seu olhar penetrava a minha alma e nele havia um mistério que me invadia. Ele então puxou minha mão dizendo:

- Acredito em você, Mel!

Não sei quão pálida fiquei, nem por quanto tempo tremi, mas sei que meu coração quis saltar boca a fora.

Em questão de segundos Dona Antônia surgiu chamando por Maitê e por Francisco para o almoço, deixando então minhas dúvidas sobre o que aquele lindo menino havia dito a pouco, continuaram em minha mente.

Chegando à cozinha, olhei a mesa rodeada, e reparei por um instante que o numero de cadeiras lá existentes não eram compatíveis com o numero de pessoas na casa. Sobrava exatamente uma, e nesta, sentei-me.

A senhora que estava ao lado de Sr. Silvano se apresentou como Dona Margarida e logo que voltou-se para a refeição, Antonia abraçou a menina que vivia a correr pelos cantos com Francisco e disse:

- Esta riqueza aqui se chama Nina, a menina de olhos azuis.

Todos se descontraíram, rindo continuamos a refeição, porém a cada segundo me sentia mais envergonhada.

A comida estava ótima, de sabor único. Sem perceber, ao terminar de comer, fechei meus olhos sentindo uma dor inigualável.

A saudade era imensa e neste momento tentava resgatar em mim a lembrança da minha vida natural.

Foi neste instante que me deixei levar pela emoção e sussurrei palavras de raiva:

- Que droga! Que droga!

Repentinamente todos me olharam e Dona Antonia sem entender nada me questionou:

- Mel? O que disse?

Eu abri os olhos completamente sem palavras e pedi desculpas.

- A comida não está boa querida? – Perguntou Antonia.

- Não, não... pelo contrário. Está perfeita. É que estou muito confusa, não se preocupe. Não há nada com vocês.

Ela sorriu discretamente, com um ar curioso mas ao mesmo tempo respeitável e continuou a beber o suco.

Todos se aquietaram, e voltando e deixaram de se importar com minhas explicações.

Ao terminarmos a refeição levantamos e cada um foi para um lado. Peguei a louça espalhada na mesa e levei até a pia para lavar. Ali fiquei ocupada por algum tempo.

Enquanto lavava a louça, comecei a ouvir lindas musicas... No piano... Logo apareceu nina, cabeça baixa, dedo na boca... Olhar tímido...

- Mamãe esta te chamando para ouvir minha irmã tocar.

Acabei meu trabalho e fui com prazer.

A música entrava pelos nossos corações, invadia o espírito e desmanchava qualquer rancor guardado.

Olhei para Dona Margarida e pude ver lágrimas em seus olhos, e senti que aquele lugar era de uma nobreza sem igual. Seu esposo Silvano a abraçava e acompanhava com os dedos sobre as pernas os toques do piano.

Quando Maitê parou de tocar todos nós aplaudimos, Dona Margarida chorava discretamente enxugando as lágrimas com um lenço florido.

Nina se sentou ao lado de Maitê e dedilhou uma canção pequena, o que descontraiu a todos e tirou dos lábios da menina um lindo sorriso.

Passamos a tarde ali, ouvindo as músicas lindas que Maitê tocava, alguns sorriam, outros até choravam, mas sempre ouvíamos, admirando o dom daquela garota.

(continua...)

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