Partes Obsoletas

Partes Obsoletas

Neudson Nicasio

Não há nada que eu goste mais do que a possibilidade de dormir umas horinhas a mais numa manhã de domingo, apesar de que fazem anos desde a última vez que pude desfrutar desse privilégio dos preguiçosos. Em plena sete horas da manhã, me vejo em um embate de Jiu-jitsu com Bruce, o manhoso buldogue cinzento que parece estar desesperado para nossa caminhada matinal e seu encontro com uma oliveira que fica a três quadras de casa e que, por razões óbvias, apelidamos de “árvore do xixi”. Peço uma folga para meu grande amigo, que entende minha necessidade de espaço e sai disparado para pegar a coleira. Escovo os dentes com o aroma do café sendo preparado, preenchendo cada espaço da pequena kitnet. A quantidade certa de água, café e açúcar permanecem as mesmas de modo que o fim do processo coincida perfeitamente com o do meu ritual higiênico. Ovos, pão e requeijão são também programados para se conciliarem com a tarefa de vestir a roupa e calçar os tênis. Tudo pronto.

Bruce decide deitar aos meus pés, sem muito progresso em sua busca pela coleira e ainda assim, arfando ansioso pelo nosso passeio. - é a refeição mais importante do dia! - digo-lhe de boca cheia, enquanto deixo cair um pedaço do lanche, que é abocanhado em uma velocidade incompatível com a expressão de preguiça do cachorro. Terminado os devidos tramites de nutrição, iniciamos o aquecimento, eu com os membros superiores e Bruce com o osso de borracha, correndo de um lado para o outro. Pego então a coleira e então partimos em uma jornada épica a procura da “árvore do xixi”.

O dia estava limpo, com as nuvens parecendo pequenas ovelhas, separadas em um imenso pasto azul e o sol brilhando com uma intensidade sem igual. Uma brisa fina era adicionada à resistência natural do ar, refrescando o corpo enquanto corríamos. Aproveitei para sintonizar uma estação de rádio de modo a ter uma trilha sonora para tal momento, o que me fazia sentir como se estivesse dentro de um filme, treinando para algo importante.

Ao avistar nosso objetivo, Bruce impulsionou-se a correr como se aquela árvore fosse o último pacote de petisco sabor costela do mundo. Meus bíceps assemelham-se a duas montanhas: levantamento de peso? Não. Tudo graças a resistência de contrapeso para evitar que Bruce me leve para passear, ao invés do contrário.

Antes da ação, meu grande amigo também executa seu ritual pessoal de higiene: dá algumas voltas ao redor da árvore, fareja bem para saber se sua identidade urinária ainda está bem demarcada e em seguida, tece eventuais retoques através de uma enorme cachoeira amarela. Do outro lado da rua, encontra-se meu olhar, procurando dar-lhe a devida privacidade. Logo ele volta a se agitar, indicando que terminou as suas necessidades e está pronto para continuar a caminhada.

Decidimos andar mais umas quadras adiante, até que uma mulher veio correndo na direção contrária e acabou passando pela gente. Bruce continuou alheio a tudo, exibindo seu sorriso de satisfação, completamente aliviado. Já eu, deveria estar sofrendo um mini infarto do miocárdio, com direito até ao espetáculo lago-dos-cisnes, coreografado pelo café-da-manhã dentro do meu estômago. Aquela figura feminina era familiar, mas todas as minhas pretensões eram contrárias a de confirmá-la sendo quem eu suspeitava que era.

- Continua correndo Bruce... – sussurrei – finja que nada está acontecendo...

Mas nessa hora, Bruce estancou e começou a deixar um “presentinho” na calçada. Havia um milhão de situações em que eu poderia colocá-lo no colo e sair correndo feito um louco, mas ele escolhera envolver um chamado da natureza para me deixar sem saída. Cachorro filho da m...

- Desculpa, eu acho que conheço você de algum lugar... - disse a mulher, aproximando-se – Sim, você é aquele rapaz do curso de informática! Nós fizemos juntos na Escola Conexão, lembra de mim?

- Ah, lembro! - me fiz de surpreso, enquanto debatia se não era melhor ter respondido que não a conhecia.

- Puxa vida! – disse ela dando-me um leve abraço – Nossa, quanto tempo faz? Dois ou três anos?

- Por aí assim, eu acho... - sorri desconcertado, sabendo que na verdade faziam cinco anos.

- E esse meninão aqui? – pôs-se a acariciar Bruce – Como se chama?

- Esse é o bom e velho Bruce – respondi – trouxe ele para passear um pouco.

- Nossa, Bruce, igual ao nome do Superman, não é? - sorriu ela – que eu me lembre, você gostava muito dessas coisas de jogos, filmes e computadores...

Bruce recebia de bom grado as carícias da minha velha conhecida, mas nem toda a manha presa nas rugas daquele rosto foram o suficiente para que ele me olhasse com o olhar desesperado, diante de tal equívoco que seria uma ofensa se pronunciada em uma convenção de história em quadrinhos – você que procurou, agora aguenta! - disse-lhe telepaticamente.

- Vocês vão continuar correndo quarteirão acima? - perguntou ela.

- Não, na verdade viemos até aqui apenas para ele se aliviar um pouco. – tentei despistar – agora é hora de voltar quarteirão abaixo.

- Que ótimo! - exclamou ela – estava indo para lá também, aproveitamos e corremos juntos, o que acha?

- Por mim, tudo bem! - devolvi me perguntando a funesta razão pela qual coloquei os pés para fora da cama hoje.

Começamos então uma caminhada leve, onde Bruce saía na frente, quase flutuando por conta do alívio urinário e totalmente alheio a mim, deixando-me à mercê de uma complicada entrevista.

- Estou impressionada com você! - disse ela admirada – você era tão magrinho e olha só hoje! Tem que me ensinar a receita.

- Alimentação e muito exercício... – respondi sem jeito.

- Imaginei, lembro até que você jogou um torneio de futsal naquela época, e que foram até campeões, realmente desde essa época você já tinha potencial, não é para menos você estar tão bem assim hoje!

- Sim, claro... - concordei desajeitado, enquanto lembrava a versão real da história, onde eu tive um ataque de asma e tive de ser substituído nos sete primeiros minutos de jogo e de como isso virou uma piada na turma – fomos campeões.

- Claro, um espírito nato de liderança! - devolveu ela – inclusive lembro de você, sempre à frente das reuniões da turma, resolvendo os problemas, inclusive o caso do roubo do tênis da Batulinha, lembra? Foi uma confusão só!

- E que confusão! Mas felizmente tudo foi se resolvendo... - Exclamei enquanto revia a versão real da história, onde o roubo misterioso do all-star vermelho da menina ruiva apelidada de Batulinha pela turma (era o mesmo nome de uma bala de morango que fazia e ainda faz muito sucesso) virou um caos, terminando com o pai dela ameaçando processar a escola, alunos revoltados por serem suspeitos de roubo, eu no meio de um fogo cruzado de opiniões e intimações. Fora os tapas da Batulinha que me sobraram por conta das minhas tentativas em defender a minha atual entrevistadora, após ela ser acusada de roubo. Três anos depois, através de um jogo de verdade ou desafio, descobri que realmente tinha sido ela.

- Nossa, bons tempos! - exclamou ela.

- Bons tempos... - (para você, que não tomou uns tapas de uma ruiva furiosa).

- Tivemos também aquele trabalho em grupo, lembra? - continuou ela – Em que falamos sobre vírus de computador, que eu bem me lembro, a gente arrasou!

- Claro, um trabalho nota 10... - falei, enquanto lembrava de que por conta de um resfriado de 17 anos e que estudava na turma ao lado, ela havia faltado todas as reuniões do grupo e no dia da apresentação limitou-se a: apresentar o grupo, segurar a cartolina e a agradecer pela atenção. Tiramos 8,5.

- Mas eu confesso que no fundo era muito preocupada com você... - disse ela – você sempre tímido, calado, quase não tinha amigos. Eu achava muito solitária a sua vida com computadores e tinha muito medo que isso te impedisse de ter uma vida normal...

- Como assim, vida normal? - perguntei confuso.

- Sabe, aquela sua parte nerd era fofa – começou ela – mas a vida é muito mais que isso, hoje você está aí, um homem muito bonito por sinal, fazendo exercícios, cuidando da vida. Eu aposto que você é um cara que curte baladas, que pega geral, que vive a vida no limite e com intensidade...

- Realmente, uma vida bem normal... - devolvi enquanto tentava deduzir porque o caminho de volta à minha casa parecia o dobro do que o normal.

- Sabe o que eu acho? - continuou ela – Acho que faríamos uma ótima dupla juntos! Lembra que nossas notas no curso de informática eram tão altas que fomos até chamados para estagiar em um escritório de administração. Ou vai negar que somos a receita do sucesso?! - deu uma piscadela com o olho.

- Sim, éramos uma ótima dupla... - concordei, dessa vez ficando vermelho de raiva e revolta porque ela havia plagiado minha redação para conseguir a vaga de estágio e durante aquele período, após falarem que apenas um de nós seria contratado, deu um belo banho de café no computador que era de minha responsabilidade. Apesar de ter me ferrado, foi uma boa sabotagem, diferente do café que ela fazia. Talvez por isso o computador tenha dado perda geral ao invés de apenas ter danificado alguns componentes.

Finalmente compadecido da minha situação, Bruce começava a choramingar e a forçar um pouco mais a guia de passeio. Finalmente havíamos chegado na esquina de casa.

- E você, tem feito o quê da vida? - perguntei para tentar esgotar todas as possibilidades de diálogos.

- Me descobrindo e redescobrindo enquanto representante de vendas... - disse ela.

- Legal, de qual empresa?

- Ah, é uma empresa pequena, acho que você não deve conhecer... - continuou ela, desconcertada e levemente nervosa.

- Certeza? Pode falar, talvez eu conheça.

- É uma do ramo de paisagismo, é algo bem chato sabe... - continuou tentando mudar ou encerrar o assunto (missão cumprida).

Cheguei na frente de casa com alguns metros de silêncio conquistados. Durante a despedida, ela pediu meu número para voltar a entrar em contato e eu disse que estava sem telefone no momento, ela então me repassou o dela, insinuando que marcássemos qualquer outro dia para continuarmos as recordações do nosso período de colegas de curso de informática.

- Tchau Superman! - disse ela por fim, despedindo-se do Bruce, que manifestou um grunido que ela interpretou como sendo manhoso, mas que na verdade, ainda era de indignação – olha só, ele já está até com saudade...

Nos despedimos com um breve aceno e ela continuou sua corrida quarteirão abaixo. No momento que iria começar as minhas reflexões pós-traumáticas, percebi que a pequena mochileta rosa que ela trazia nas costas não havia sido fechado corretamente. Três passos e a carteira da qual ela tirara o cartão com seu número de telefone ia de encontro à grama que crescia pela calçada, em uma queda silenciosa. Aguardei então pacientemente até que ela dobrasse a esquina, certificando-me de que não havia ninguém observando.

- Vai Bruce, pega! - dei a ordem soltando a guia.

Pouco tempo depois, recebi a carteira envolta em uma poça de baba.

- Bom garoto! - cumprimentei-o.

Dentro de casa, após outro bom banho, pus-me a examinar a carteira, encontrando identidades falsas, cartões clonados e um bom montante de dinheiro. Retirei uma parte considerável daquela quantia e aprontei-me junto de Bruce para darmos uma volta. Ficamos muito felizes, ele com seus novos brinquedos e petiscos (e uma guia temática do Batman para ninguém cometer erros quanto a sua identidade) e eu com um videogame novo. Aproveitei também para passar em uma pequena loja de departamentos. Por mais errado que seja gastar o dinheiro alheio, o meu senso próprio de justiça requereu apenas o valor necessário para que me fosse compensado todos os transtornos. Tanto que devolvi para a rua a carteira, com os cartões e algumas notas, devolvendo ao destino a responsabilidade de devolver ou não o objeto à sua dona.

Logo mais a noite, decidi que não seria vencido pelo tédio e deixei Bruce com a minha irmã, na esperança que os gêmeos hiperativos fosses o bastante para drenar toda a energia canina do meu companheiro. Estava então livre para conseguir ir a um compromisso. Durante a caminhada, refleti sobre o encontro matutino e sobre as partes que aquela memória seletiva insistia em recordar. Nós éramos amigos, mas nunca mantivemos contato após o fim das aulas de informática, diferente de outros colegas com quem tenho contato até hoje. Mas em uma coisa ela estava certa: eu não era mais o mesmo. Existem partes da vida que nos acompanham, amigos, histórias, desafios, e tudo isso sempre parece querer despertar a nossa melhor versão, mas se utilizarmos de analogias mecânicas, ela não havia se dado conta de que todas essas lembranças e quaisquer possibilidades de retomar as relações nada mais eram do que um conjunto de peças obsoletas. Não daria para ter uma vida normal (o meu conceito de normal, não o dela) assim.

São oito da noite, estou chegando ao meu destino com uma mochila nas costas e uma sacola na mão direita. As luzes da casa estão acesas e uma mulher me espera do lado de fora, com uma das mãos nos bolsos de sua calça jeans e um sorriso travesso no rosto.

- Anda, vamos logo que já estão todos ansiosos! - disse ela em meio a um sorriso.

- Nunca vi pessoas tão ansiosas para perder no Encanador Kart 3. - devolvi.

- Robson, cadê o Bruce? Não vem?

- Está em missão com uma dupla dinâmica.

- Entendi – sorriu - E essa sacola? - Perguntou curiosa.

- Presente surpresa... - entreguei-a.

Ao olhar o presente, seu olhar brilhou. Era ótimo sempre acertar em cheio.

- Amei, sério! - disse ela com um beijo de agradecimento – não fazia ideia de que você se lembrava disso.

Eu ainda era o cara que gostava de computadores, tinha namorada, amigos e tido uma melhoria em alguns aspectos importantes, mas a essência não era uma parte obsoleta, talvez fosse a mais essencial para que essa normalidade toda fosse algo bom. Mas não era hora para reflexões, haviam coisas mais urgentes e necessárias:

- Se prepara Batulinha... - devolvi sorrindo – põe o tênis e vamos nessa!