Um Teatro... Chamado Rua do Fio.

Dos muitos Brasis, podemos começar falando das tantas Beléns. E uma dessas me lembrou a rua do Fio, que sinônimo de diversão, naquela periferia do Telégrafo sem fio, era qualquer movimento, que perturbasse a rara quietude do momento ou fosse além do exacerbado naquele pandemônio cultural. Ao que relatarei sucintamente , como amostra três situações marcantes na vida dos personagens ou pelo menos insinuantes, que ali aconteceram, pra toda a rua registrar. Um dos meus humildes intuitos aqui, é provocar o lampejo de algumas situações, onde haverá quem possa lembrar de outras, até mais significativas, que a minha lembrança não alcance, ou que eu já, nem fazia parte diretamente quando aconteceu, pelo andar natural da vida. Mas pra quem tem e teve o privilégio de ali morar, com certeza ainda conta histórias, fez parte dela ou morre de saudades, de uma época importante na formação de uma geração, que tem efeito até nos dias atuais.

Até não queria contar o santo, pra causar, se não curiosidade, uma emoção diferente em cada um que fez parte das seguras traquinagens ou artes, que acredito, cada rua ou bairro tem na sua entranhas, porém faz-se necessário.

Então lá pelas décadas de 70, 80 e outra década, a de 90, que como disse, já começava a me afastar da rua, por conta dos afazeres comum a cada um, como o trabalho, a faculdade e outros. Aconteceram cenas, que só no cinema, no teatro ou na televisão possam se repetir, bem é claro, também em nossas mentes, pra quem viveu aquele período.

E uma das tantas, que escolhi foi a do meu amigo Pilão, que num momento inusitado de sua vanguarda, almejando brincar com os apetrechos de diversão da época, como linha encerada, talas e papel de ceda, ou até mesmo o papagaio pronto e acabado, a fim satisfazer a sua ambição pessoal e ostentar na rua com a molecada. Procurou como criança, que sobe em árvore, cheia de vitalidade, sem identificar o perigo, as moedas do cofrinho, que ficava descuidada na sala e não as encontrou. Na falta destas, infantilmente se aventurou a pegar e vender uma corrente de ouro, recém encontrada perdida, que por ter o seu desaine feminino acabou sendo doada a sua irmã. Com a venda do objeto, que rendeu-lhe um dinheiro, cujo valor ele mesmo nem noção tinha, começou a esbanjar com um e com outro, até que o fez com seu irmão, quem o delatou a sua mãe. Então numa tarde qualquer, a rua do Fio canto com a Brotinho presenciava esse meu amigo curtindo o céu azul com a sua rabiola, fazendo laços faraônicos, a cantar suas vitorias como só ele sabe fazer, totalmente envolvido, em seu momento de realização, quando do nada, dona Maria, a sua mãe, que trabalhava bem no canto dessa confluência, a lutar guerreiramente como muitas mães do local, para criar os filhos em sua venda de alimentos, a essa altura, já conhecedora dos fatos, enormemente ferida e irada, pensando mil e umas coisas da ação do seu filho o sentenciou. A fazê-la reagir bruscamente com versáteis alaridos e pegando um pedaço de tabua para, quem sabe com o uso da força e da autoridade, o colocar no eixo de uma educação, que no momento o botou pra correr. Pra quem assistiu e ouviu os verbetes , mesmo de longe assinalou ou deu boas risadas. A próxima cena segue um extra da preocupação, que cada mãe senhora, da rua do Fio, assim com as de outras ruas seguramente tinha por suas crias, porque queriam o melhor pra eles.

De forma, que não muito distante desse episódio, o outro caso surgiu , de um preâmbulo de romance, como um duelo de faroeste, com lampejos de boxe, mas que na verdade era como era. E nada disso teria acontecido se não fosse o Casemiro e Rubinho encontraram e convidaram o Robertinho em frente ao colégio Santo Afonso pra os acompanhar a casa de uma menina, que se não me engano o Rubinho estava cismando.

O tempo, que é amigo de uns em dado momento e nem tanto de outros, passou depressa, e quase dezenove e trinta daquela noite, nem era muito tarde à época, e se comparado com os costumes de hoje é muito cedo. Mas o fato, que se ignora pra quem é filho, é a preocupação, que pra quem é mãe, ou pai faz muita diferença. E assim os três vinha distraidamente conversando da casa da menina, quando ao adentrarem no inicio da rua do Fio encontraram o Eduardo, filho do seu Evandro, que disse:

- Robertinho...Tua mãe está louca te procurando. Ela falou que tu vais apanhar.

Dito isso, Rubinho entrou voando pra sua casa, Casemiro ficou lá pelo canto e o nobre cavalheiro respondeu:

- Tu és doido é. Já tenho 14 anos e a mamãe não me bate mais.

E seguiu tranquilamente entrando na rua , como se estivesse pisando num tapete vermelho, mas quando começou a observar a plateia agitada. Dona Helena previamente exaltada com a apresentação do ato inicial disse de sua janela:

- Robertinho meu filho, onde você estava? Tua mãe foi atrás de ti lá na igreja, estava doida te procurando.

A situação começava a ficar feia e tornou-se mais agitada quando , mais adiante dona Raimunda do seu Venâncio esboçou:

- Vai Robertinho, explique pra sua mãe, onde você estava, que ela não vai te bater.

Nesse instante o caminho começou a tomar um tom dramático, as cortinas e as luzes aumentavam o tom de dramaticidade e como o caminhar de Jesus ao Calvário, ele seguia impávido e pelo menos nesse quesito, Robertinho foi preciso, na obediência ao que Jesus fraseou, quando disse: "eu sou o Caminho".

Sem a sonoridade de suspense ou tendência ao perigo, ele deu mais uns passos e olhou, viu sua mãe em frente a sua casa em pé bastante agitada com algo nas mãos. Apreensivo, coração descentralizado do normal e sem perde de vista os movimentos dela, ele como um pistoleiro num duelo decisivo, se permitio olhar de lampejo, como a um saloon do faroeste, a casa do seu amigo Júnior, que estava sob tensão também na porta entre aberta, observando o desfecho, juntamente com o seu pai Antônio e sua mãe, dona Aracy, que nervosamente eloquente vociferava como a última luz daquele túnel à dona Graça e a Robertinho:

- Pelo amor de Deus vizinha, se acalme e não bata nele. Vai Robertinho, meu filho entre , que ela não vai te bater.

Antes do último ato, dona Raimundinha, que bem em frente a casa dele morava, até tentou acalmar a fera dizendo:

- Graça, Graça te acalma mulher.

Todavia, o barulho ensurdecedor da tragédia perturbada pela preocupação, aliada ao estresse da profissão punha a frente a irá a calar a razão. E cada vizinho, em sua janela ou porta seguravam as suas emoções, havendo quem de longe até apostasse em qual seria de fato o final daquela situação.

Ali frente a frente, Robertinho aparentemente calmo com a sua mãe visivelmente descontrolada, ele sem ter mais o que fazer, até tentou argumentar diante da pergunta caraterística dela:

- Onde tu estava?

Agora em estado anormal, agonizando de medo, ele argumentou emprestando do bom nome de seu amigos o álibi para acalmá-la:

- Mãe, eu estava ali, como o Casemiro e com o Rubinho.

Ela como um juiz e certa do que queria fazer desmistificou e repudiando as provas agravou:

- Eu não quero saber com quem tu estava, já te falei, que não te quero andando por ai a noite, que é perigoso. Agora entra, que tu vais apanhar.

Sabendo que não adiantava mais conversar, se preparou, arquitetou uma fuga até acalmá-la, olhou fixo e correu. Na hora que ela, com o cinto nas mãos chicoteou, ele mais rápido, que qualquer pistoleiro se abaixou e ela bailou, rodopiou no ar. Agora sim, ele sem perceber conseguira fazê-la atingir o ápice da fúria.

Aplausos e aplauso se ouvia no horizonte imaginário daquele palco, cuja noite estrelada confundia-se com o deitar da lua sobre o mar, que o apresentador inanimado chamou a tônica de todos, para o gran- finale. Voltando ao que acontecia de real, ela sob a força da raiva instigada, segurando firmemente o cinto partiu em disparada atrás do seu filho, que pensando, por sua juventude tê-la deixada para trás, correu para se fechar no banheiro, mas quando entrou, quase a salvo, ela conseguiu colocar o seu braço como entrave para fechar a porta. Ai então não houve quem a desmobilizasse dos efeitos, do descarrego da loucura, da possessão, daquele santo que baixou no terreiro. E o carimbó começou, passando pelo siriá, brincadeiras de rodas, navegando pela ondas da lambada, do brega até chegar nas musicas clássicas, quando a dona Aracy ,com a dona Raimundinha, enfim conseguiram intervir.

Dona Wilse, a avó, que estava na cozinha, como uma cumprisse de sua filha, nada falou e só observou.

De couro quente como dizia minha avó, ele foi tomar banho, pra jantar e dormir, enquanto Dona Raimundinha e dona Aracy preparavam um copo de água com açúcar socorrendo dona Graça, quando no fim do ato, daquele último assalto, quem precisava mesmo de consolo era Robertinho.

Nesta altura a rua, borbulhava de comentários do acontecido, que iam de casa em casa servindo de argumento, para os pais aos seus filhos como um exemplo a não ser seguido, pois o final pra eles também seria como o ocorrido. Mas como tudo na vida não é, ali também não era só tragédia ou drama as comédias se faziam como opção tão significativas, quanto o lugar de cada um em seu papel e lá numa noite junina inventaram uma quadrilha e para a surpresa de todos, os nossos pais, tão austeros, que só víamos através de suas posições de autoridade eram os protagonistas. Não lembro ao certo, quem idealizou, tenho na memória, que a Ruth filha de uma das Marias da rua, quem tinha o hábito de animar, liderar e nortear sempre essas movimentações inusitadas. Tanto, que naquela noite digamos que fosse festejo de são João, quando as fogueiras simplesinha ilimitavam-se a iluminar a noite, como aquelas surreais que o Rui fazia. Elas em suas mistificações crepitando a madeira aqueciam e a aproximavam os corpos com as simpatias e brincadeiras de casamento, de passes de compadres e tantas fantasias daquele período, sobretudo trazendo a mesa a gastronomia típica arraigada ao fortalecimento da integração e da amizade naquele local, apesar das desavenças culturais nossas de cada dia.

De cada janela se assentava um camarote, a musica festiva invadia os ouvido a ritmar, a incentivar levar pra frente o boi bumbá, a querer dançar o forró, a instigar o bem estar da molecada, que feliz rindo a toa com os seus estalinhos, rojões, foguetinhos, balões e outros entretenimentos, se perdiam em traquinagens pertinentes as suas vicissitudes. Até quando apareceu aquela quadrilha, com os nossos pais que desfilhou, animou e fez do momento uma emoção tão empolgante, que todos aplaudiram como se já tivesse terminado e na verdade, apenas estava começando. Foi ai seu moço, que entraram os atores, que já faziam bem esse papel profissionalmente na vida real, com seus sonhos, alma viva e com as suas habilidades inatas, até então desconhecidas pela maioria, que ali residia e principalmente pelos filhos. Então depois da quadrilha, que veio valsando, ritmando, envolvendo cada morador do inicio da confluência da rua do Fio, com a Brotinho até a São Pedro, aconteceu o ápice daquele conjugamento com o casamento na roça, que eu particularmente ouvia falar, mas só dessa vez presenciei sem perceber, que ali fundava-se um marco cultural, que hoje poucos lembram e outros ainda nem tinha nascido estruturalmente ou não, mas aconteceu e se desenrolou na casa da dona Florinda, que hoje o local, se não me engano é uma igreja adventista. A peça real foi muito bem estrelada pela dona Oscarina seu Carlão, que era o pai da noiva, dona Graça a filha, tendo com noivo o Estevam, o padre seu Militão e o delegado o seu Orlando. Bem executado e bastante aplaudido por todos que acompanharam a encenação, assim com a noite se desfez mais um ato dessa rua, que de tudo já aconteceu. Por isso torna-se , a cada dia , importante frisar, relembrar, conservar a memória e sedimentar como um processo de evolução e de importância na raiz de cada morador, essas passadas vivencias.

Assim como de fato aconteceu, não sei se contei, mas tentei, enveredando por uma forma diferente de contar. Obviamente, que cada um vai lembrar de suas traquinagens e do resultado final, se dessa forma se converter terei atingido o meu objetivo, que era o de trazê-los pra esse oásis.