Na privacidade de uma pintura

Gideon Argov caminhava pelas ruas frias de Viena. O tempo era nublado, mas um sol com raios discretos teimava em aparecer entre as nuvens. Saiu de um aconchegante Café e seguiu pela Mariahilfer Str. Em direção ao Museu de História da Arte em Viena.

O suicídio de Lucrécia estava sobre o cavalete no pequeno estúdio cedido a ele. Antes de combinar as cores e usar o pincel, Argov olhou para o semblante de Lucrécia. Os olhos fechados e a cabeça inclinada para baixo mostrava uma dor silenciosa. Ele olhou o punhal que ela fincava no peito, imaginando a dor que ela sofria. Não a dor da ferida, mas de recorrer ao suicídio depois de ser estuprado por Sexto Tarquínio, filho do rei Tarquínio.

Ele molhou o pincel e com delicadeza pincelou o rosto de Lucrécia com extremo cuidado. O rosto foi, aos poucos, clareando e voltando a cor original. Quando sua mão direita cansou ele trocou para a esquerda, sem alterar a habilidade e delicadeza.

Naquele domingo, havia poucos funcionários nos estúdios de restauros, Argov tinha o espaço todo para ele. Quando trabalhava com muitas pessoas usava sempre uma cortina negra para se isolar. Era sempre visto como um artista excêntrico. Na verdade, quando a pintura estava sem verniz e no retoque de suas cores ela estava exposta como um corpo nu, nesse momento tão intimo era necessária à privacidade.

A manhã estava acabando quando ele terminava os últimos retoques no rosto. Ele parou e admirou o trabalho. A velha postura, a mão na cintura e a outra com o punho cerrado sobre os lábios.

Finalmente, se deu por satisfeito e pensou em ir para o manto, quando Ambrose um americano que cuidava das esculturas do museu apareceu e chamou-o para almoçar. Então Gideon Argov se lembrou de que estava com fome e saiu para almoçar com Ambrose.

Quando se tratava de restauros ele sempre perdia- se no tempo.