O Jardineiro

O JARDINEIRO

Sete horas da manhã. O vento frio e o nevoeiro espesso indicavam a chegada do inverno. Turíbio levantou-se sonolento, abriu a pequena janela que impedia a entrada dos tímidos raios solares, respirou fundo e começou a tossir como se o ar puro inalado o estivesse sufocando. Tossiu durante uns três minutos com tanta intensidade que chegou a roxear as bochechas e estufar os globos oculares. – Maldito cigarro, praguejou, - preciso parar com essa desgraça senão vou morrer logo.

Tinha apenas vinte anos, mas aparentava uns trinta e cinco. A face enrugada, a pele ressecada, os cabelos parcialmente grisalhos e a esqualidez física profunda indicavam que seu comentário estava correto, não lhe restava muito tempo. Fora advertido pelos familiares dos efeitos nocivos do canudinho de fumo, mas preferiu desafiar as advertências para provar que era “homem” e levou adiante sua intenção de “suicídio” pelo nefasto vicio adquirido.

Fizera uma consulta médica e foi constatado enfisema pulmonar que havia tomado quase a totalidade de seus pulmões e a julgar pela teimosia de não abandonar a fumaça da morte, em breve estaria habitando o “vale dos sem carne”. Tossiu mais algumas vezes enquanto tremia de frio. Amparado por muletas dirigiu-se ao banheiro para a pequena higiene pessoal que conseguia realizar sozinho, estava muito fraco e dependia da mãe para quase tudo.

Retornou à cama e quando se deitou sentiu ligeira vertigem. Fechou os olhos e a sensação tornou-se intensa a ponto de levá-lo ao desfalecimento. Minutos depois, Dona Célia, após bater varias vezes na porta do quarto sem obter resposta, adentrava apreensiva, encontrando o filho em posição inusitada.

Turíbio estava prostrado no leito em estado cadavérico, talvez fossem aqueles seus últimos minutos de vida se sua genitora não tivesse chegado a tempo. Dona Célia, mãe zelosa e protetora passara os últimos dois anos cuidando do filho enfermo em período quase que integral. Ausentava-se somente em pequenos intervalos para os afazeres domésticos, que não eram muitos.

A residência humilde de quatro cômodos que os abrigava era bastante confortável e Dona Célia, que sobrevivia à custa da pensão deixada pelo falecimento do esposo, recebia também uma pequena indenização por conta da enfermidade que incapacitara Turíbio para o trabalho. Com muito cuidado, a amorosa genitora recostou Turíbio no leito e fazendo uso do aparelho de oxigênio que adquirira para essas emergências, trouxe o “incauto dragãozinho” de volta.

Tossindo e expelindo sangue pelas narinas Turíbio foi recobrando a consciência. – Mamãe, quero morrer, me deixa morrer, por favor, falava o agonizante pupilo com a voz entrecortada pelos soluços e o choro convulsivo que se instalara. – Calma filho, isso vai passar, é só uma pequena crise, você já teve tantas e continua vivo, tenha fé em Deus, ele é Pai e nunca nos abandona. – Não, Mamãe, Deus se esqueceu de mim, eu já pedi tanto pra sarar, mas Ele não liga, aliás, Ele não me ouve, eu acho que Ele nem existe... - filho, não diga isso, tenha paciência, muitas pessoas sofrem nesse mundo e todo sofrimento tem uma explicação, nós é que ainda não entendemos os motivos, mas acredite meu amor, não é Deus que faz a gente sofrer.

Esses diálogos tinham se tornado rotina nos últimos dias e Dona Célia, um espírito evoluído na Terra, com bases sólidas no cristianismo procurava amenizar o quanto possível o sofrimento do ser amado que lhe fora entregue pelo Criador, sabia que em breve não mais teria sua presença física e antevendo a data dessa separação orava com fervor e agradecimento pela oportunidade de estar presente naqueles momentos.

Turíbio não era má pessoa, mas tinha sido imprudente ao desrespeitar os conselhos que recebera dos pais, e como conseqüência dos abusos aplicados a si mesmo, ocorreu o desequilíbrio físico manifestado em graves lesões de caráter irreversível, em resumo, o infeliz rapaz, fazendo uso do livre-arbítrio, abreviara seu tempo de vida. - Mamãe, eu nunca fiz mal a ninguém, entendo que esse maldito vício é o responsável pela minha dor, mas tem tanta gente que fuma e vive até os noventa anos, então porque Deus está castigando somente eu? Insistia o desequilibrado mancebo. – filho, respondia Dona Célia com paciência e carinho, Deus nos criou a todos com amor e jamais faz distinção de seus filhos, para Ele, somos todos iguais, e esse amor, que é infinito, chega até nós na mesma proporção, o que acontece de fato é que cada pessoa está em um nível diferente de entendimento do significado da vida e quando não fazemos bom uso do “aparelho físico” que Ele nos “empresta”, o sofrimento é a forma utilizada para nos dizer que estamos no caminho errado, na verdade, todos iremos morrer, mas até que isso aconteça é muito importante que aproveitemos cada segundo de nossa existência física da melhor maneira possível e se não respeitamos o próprio corpo como podemos culpar a Deus pelo nosso infortúnio. – para a senhora falar essas coisas é fácil, pois não está sentindo as dores que sinto e se Ele ama a gente porque me deixa sofrer se o único mal que fiz foi engolir fumaça? – filho querido, continuava a genitora, com os olhos marejados, e agora um pouco mais incisiva em suas colocações, Deus permitiu que fizesse de sua vida o que bem entendesse inclusive que ignorasse os conselhos que demos a você a respeito dos malefícios do cigarro, não é justo que o culpe pela sua escolha infeliz, pense a respeito e reflita sinceramente, a sua dor é a nossa dor, todos nós estamos sofrendo com a sua situação, mas queremos que saiba que o amamos e estaremos juntos até o momento que nos for permitido por Ele, e agora acalme-se e descanse, preciso preparar a refeição, volto daqui a meia hora.

Foram as ultimas palavras que Turíbio ouviu antes de adormecer novamente. Um breve silencio, e Turíbio viu-se em um jardim maravilhoso. Ficou encantado e pela primeira vez em alguns anos conseguiu inalar ar puro sem que isso lhe trouxesse o incomodo da tosse. Observou tudo com calma, o tempo parecia parado, uma brisa suave acariciava seus cabelos enquanto vislumbrava a figura de uma pessoa que se aproximava de forma lenta, mas constante. Percebeu que se tratava do jardineiro, a poucos metros de distancia notou traços familiares na fisionomia daquele senhor, porem, não o conhecia, não pessoalmente. – olá meu rapaz, interpelou o sorridente velhote, posso ajudá-lo em alguma coisa?- esse lugar, é tão bonito, quem é o senhor, como vim parar aqui? – calma garoto, uma pergunta de cada vez, temos tempo, venha comigo, vamos nos sentar naquele banco, disse, apontando o aparato de madeira que ficava sob uma frondosa árvore. Dona Célia, enquanto esperava o cozimento dos alimentos, sentou-se, cerrou os olhos e com o pensamento elevado a Deus orou pelo filho enfermo, não pedindo a cura, mas que lhe pudesse ser esclarecido o porquê de seu sofrimento e que Turíbio tivesse a condição de aceitar a provação que se fazia necessária para sua evolução espiritual.

Envolvida nas vibrações de amor que a prece sincera proporcionava Dona Célia não conteve as lágrimas que desceram abundantemente por sua face serena. Turíbio, meu rapaz, o que te aflige? Perguntou o nobre jardineiro. – quem é o senhor? Porque quer me ajudar? Parece que o conheço, mas não me recordo de onde e como sabe meu nome? – continuas ansioso meu querido, vamos devagar.

Quem eu sou não é importante nesse momento, precisamos conversar sobre o seu problema, parece-me que andas insatisfeito com sua atual condição. – claro que estou, respondeu de imediato, o garoto, colocando a mão sobre a boca para evitar a tosse que retornava porem de forma bem mais amena que de costume, e após uma breve pausa continuou; faz dois anos que minha vida é ficar deitado e dependendo de minha mãe para quase tudo, isso não é viver, eu queria morrer.

O que eu fiz para merecer isso? Porque Deus não me escuta se eu já pedi tanto pra me curar dessa maldita doença? Minha mãe disse que Ele ama todos nós, mas eu não acredito, se Ele amasse mesmo não deixava a gente sofrer tanto assim, eu quero morrer... - Filho, respondeu o gentil “arquiteto das flores”, sua mãe não mentiu a você, tudo que ela lhe disse é a pura verdade, observe a grandeza do amor do criador por nós, veja esse jardim, as flores, você sabe por que elas estão tão belas? E antes que Turíbio dissesse algo, o sereno ancião prosseguiu; alguém cuida para que isso aconteça e sabe de que maneira? Começa pela semeadura, a semente deve ser plantada em terreno fértil, pois ali ela encontrará os nutrientes necessários ao seu crescimento, mas somente isso não basta, há outros cuidados a serem tomados até que a planta produza as flores e os frutos. Abandonada à própria sorte dificilmente atingirá o ápice a que foi destinada.

Enquanto ouvia, Turíbio percebia uma considerável melhora em seu estado físico, a dificuldade para respirar desaparecera, sentia-se mais leve e as dores cessaram por completo. Terminado o preparo da refeição, Dona Célia abasteceu-se de algumas frutas e retornou ao quarto para cuidar do filho amado. – Meu querido, complementava o amoroso interlocutor do Éden, somos como sementes, que o Criador espalhou pelos jardins do universo, e, semelhante à planta que precisa romper a terra para buscar a luz do Sol que possibilitará seu crescimento, também temos que encarar desafios de sobrevivência e o maior deles é vencer a nós mesmos e nossas imperfeições. O tempo, meu rapaz, ah o tempo, ele se encarrega disso, mas por que tantos sofrimentos desnecessários? Porque é tão difícil seguir o caminho deixado pelo Nazareno?

As respostas a essas perguntas serão de forma individual, pois que, cada qual possui o livre-arbítrio e aí está a maior prova de amor que recebemos do Criador, não há privilégios, mas méritos pelo trabalho bem realizado na busca da evolução. Turíbio, envolvido pelas vibrações de amor que o dialogo propiciava e percebendo naquelas palavras as respostas para suas indagações, entrou em choro convulsivo.

Deus não era o culpado de seu flagelo, mas, ele mesmo, pelo uso equivocado de seu livre-arbítrio. – Turíbio, Turíbio, acorde, vamos meu filho, acorde, era Dona Célia chamando o rapaz para a refeição... – Não, não se vá, espere, quem é você... Por favor, não vá embora, volta... Por favor. Turíbio, ainda sob o efeito do sono balbuciava palavras desconexas. – meu filho, acorda, insistia Dona Célia, dessa vez segurando o braço do rapaz e com uma pequena sacudidela o trouxe de volta. O que foi meu filho, com quem você está falando? – Mãe, pede para ele ficar, quero conversar mais, não deixa ele ir embora não, Mãe, chama ele de volta, por favor, chama ele Mãe, repetia Turíbio entre soluços. Filho, acorde, você estava sonhando, não há ninguém aqui alem de nós, abra os olhos e observe meu querido, foi só um sonho. Não foi, Mãe, ele estava aqui, o jardineiro, um senhor de barba branca, ele conversou comigo, não me recordo muito bem do que ele me disse, mas sei que queria me ajudar, é verdade Mãe, acredite em mim, eu não sonhei.

Acredito em você, meu amor, mas tenha calma, você precisa se alimentar agora, desde ontem que não come nada, vamos lá, pelo menos uma fruta e depois vamos conversar sobre seu sonho. Mãe, não foi sonho, insistia o rapaz. Está bem, Turíbio, coma e conversaremos.

Rapidamente o rapaz devorou uma maçã, coisa que deixou Dona Célia espantada, mas satisfeita, Turíbio quase não ingeria alimentos sólidos nos últimos meses e quando assim fazia, logo regurgitava. Após o repasto frutífero, Turíbio ingeriu um copo de água e começou a narrar seu “encontro” com o misterioso velhote.

Ao começar a narrativa, a voz de Turíbio alterou-se e o rapaz pareceu estar ausente. Nesse momento, Dona Célia sentiu forte emoção e vislumbrou a presença espiritual do jardineiro citado por Turíbio. – Papai, então é você? Quanta saudade. Oro tanto por você, pra que nos reencontrássemos um dia. Eu sei minha filha, respondia o humilde jardineiro, com a permissão do Divino Mestre sempre estive do seu lado.

Filha querida, sabemos de sua dedicação com nosso amado Turíbio, porem, está chegando a hora da breve separação que ocorre com todos nós, infelizmente, nosso garoto equivocou-se em alguns momentos da caminhada e terá que retornar um pouco mais cedo que o previsto, porem, o aprendizado continua, sempre, seja na matéria ou fora dela. Estaremos juntos porque os laços de amor que une nossos corações são eternos, assim como a vida que o Pai nos concebeu. Tenha fé, a dor é passageira e serve de alerta para que o espírito imortal se empenhe e triunfe diante das vicissitudes que ele mesmo provocou. Deus estará conosco, nos auxiliando e fornecendo a ferramenta mais poderosa que existe, o Amor.

Dona Célia estava em prantos, enquanto Turíbio despertava do transe. O humilde “peregrino das flores” despediu-se deixando inesquecível perfume, prometendo voltar em breve. Passaram-se alguns dias, Turíbio teve acentuada melhora. As dificuldades para locomover-se já não o incomodavam, não mais reclamava, não sentia dores, alimentava-se bem e começara a ler livros de caráter espiritual, onde obteve respostas para muitas de suas indagações.

Turíbio transformara-se nas ultimas semanas. Conversava horas com a Mãe, partilhando os ensinamentos cristãos. Era Domingo, a chuva que caíra durante a noite anunciava a chegada da Primavera, Dona Célia levantou-se, preparou o café, como fazia costumeiramente, apanhou algumas frutas, pão integral, manteiga e um pedaço de bolo que comprara para comemorar aquele dia especial, Turíbio estava completando vinte e um anos. Disposta a surpreender o rapaz Dona Célia adentrou o quarto sem fazer barulho, e na semi penumbra colocou o “banquete” sobre uma diminuta mesa que ficava ao lado de sua cama e em seguida postou-se próxima à cabeceira do leito para acordá-lo cantando o tradicional “parabéns a você”.

Estava quase terminando a canção, mas Turíbio não acordava, pensou, deve estar muito cansado, fica lendo até de madrugada, porem surpreendeu-se quando tocou o braço do filho e percebeu uma rigidez incomum para alguém que estivesse apenas dormindo. Uma rajada de vento abriu de forma lenta a pequenina janela revelando a cena que se desenrolaria a seguir. Dona Célia, em lágrimas, abraçada ao corpo que antes abrigara seu amado filho, orava pedindo a Deus que o amparasse. Um perfume inebriante de flores inundou o ambiente e lá estava o “velho” Gervásio novamente como prometera. - Papai, o senhor veio, e Turíbio, onde está meu garoto? – Está bem, minha filha, as últimas semanas foram muito importantes para ele, conversamos muito durante o sono, sua recuperação será rápida e brevemente ele estará de volta. Tenha fé em Deus, e lembre-se sempre, os laços de amor são eternos, agora preciso ir, até breve querida.

A chuva voltou a cair, como se o Céu partilhasse a dor com Dona Célia. Meio tímidos alguns raios solares surgiram, e a mescla de água e luz, formaram um magnífico arco-íris... A Primavera chegara...

Pedro Martins

27/07/2011