Butiazeiro Velho

Resiste ao tempo, de contar e de chover, sol e vento, passagem dos seres, frio e calor. Resiste, esparsas folhas, tronco grosso, as cascas apodrecendo, algumas antigas pontas queimadas, densa forragem no chão. Ao redor o sulcado chão do agricultor, esse último, célebre companheiro.

Dava para ver dali toda mata revolvendo, a certos quilômetros, nos ventos de outono. O rugido do rio que cercava o morro ecoava distante, entremeando a mata abaixo. No topo o butiazeiro abraçava o horizonte e os sonhos da terra. A seus pés descansava enxadas, sacos de estopa e o café do trabalho de uma árdua manhã.

Tarde se despedia o obreiro da terra, esmagado o exército de pés de milho secos. As espigas haviam sido colhidas, jogada em bandeiras - que é um monte de espigas em cima dos sacos -, juntadas nos sacos já com o crepúsculo, tendo ajuda da mulher e dos filhos.

Noite o céu cobria-se de um manto negro e pérolas distantes. Em algum lugar o gemido das rãs cortava a noite, passava a brisa e agitava as folhas compridas do butiazeiro. Que cigarras cantavam tanto a tarde e à noitinha? Vinha uma pousar em seu tronco. Surda e atenta, a planta não resignava receber seus hóspedes.

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Quando as manhãs já não eram tão frias, e o dia era cheio de uma luz mais viva, a terra era revolvida para o plantio do milho. Chegava o agricultor, homem persistente, limpar as ervas daninhas, jogar o calcário branco. Passado um tempo, retorna fazer buracos, jogar as sementes e cobrir de novo com terra fofa. As crianças vinham vez ou outra ajudar. Teimavam em brincar no serviço, seguravam gravetos e tacos de pau, capins e pedaços de varana, imitando espadas e bonecos. De quem se admirar primeiro? Do homem persistente ou das crianças agitadas?

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Crescia o milharal. Contava o butiazeiro cem, duzentos ou mais irmãos. Sempre alegre e verdejantes, estridentes e por vezes irritantes, a farfalhar sempre e sempre. Sempre pai e mãe de tantos o butiazeiro sempre abraçava triste aquela reunião de plantas em plena juventude. Contava ele quantas gerações de cada centenas de que foi contemporâneo? Será tão mesquinha, passageira e frágil essa vida? No entanto lá estavam os milhos, a farfalhar e farfalhar, sempre e sempre.

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Cá e outra vez gemia longe as máquinas dos homens. Uma berrava continua, e desmoronava sempre as galhadas em algum lugar. Os sons eram perturbadores, mas o tempo acostuma, a surpresa diminui, os sussurros das máquinas dos homens eram melhor longe, bem longe.

Outra vez perto, bem perto, sentiu trepidar suas raízes. O ar vibrava. Nesse morro uma máquina berrava. Surda e atento, testemunhava o butiazeiro.

Outra vez uns meninos saíam da mata. Levavam uns troncos compridos nos ombros. Desciam um caminho em meio a restingas, e desapareciam. Sulcavam o chão a passos pesados, o lenho dançando no ombro. Iam as vezes discutindo, vezes em silêncio. Ao seu passar os passarinhos pulavam nos arbustos, se escondendo. O lagarto corria para os seus esconderijos.

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O céu negro findava a tarde. Já era tão tarde? Chovia. As copas das árvores chocalhavam, clamores e luzes pendiam dos céus. E a noite durou intensa e violenta. As folhas mexiam e voavam à força. Bruto céus derramavam sobre o chão água e vento. Escutava o butiazeiro o rugido distante dos mares. Lambia à força o sal de suas distantes correntes. O mar descia à terra. Descia do céu.

Chu-à--a-a-a-a-a-a-a. Chu-à-a-a-a-a-a-a-a-a-a-a-a-a-a-a-a-a-a. !!!

De manhã se via árvores retorcidas. A mata orvalhada, lavada, sufocada... respirava. Os germens da terra respiravam. O rio vomitava as águas, tal seu rugido. O pio das aves aqui e ali. Suportou tudo o butiazeiro. Seu tronco quase não vergava diante os ventos. Não notou a lebre que se escondia a seus pés. O céu nublado de então arriscou uns raios de Sol. A lebre saiu saltitando.

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Vez veio um menino a capinar perto. Não se recorda bem a época. Deixava um rádio perto, a falar. Uma certa altura desligou o rádio, e capinou mais devagar. Falava consigo e seu rosto marejava, sua voz era rouca, sua prece soluçava.

Que expressão tola e angustiante era aquela? Que criatura era tão complexa assim? Por que este não parecia ser tão insistente quanto os adultos? E a prece durava um tempo. Perdia-se no ritmo do trabalho. O trabalho parecia virar oração. O trabalho virava a terra.

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Os últimos dias foram estranhos à toda mata. Cada vez mais o berrar medonho das máquinas eram mais presentes. As crianças já não apareciam mais, brincar e empunhar espadas. Todavia o insistente agricultor semeava todo ano.

O frio já não era o mesmo. Já não era os mesmos insetos. O milho tinha um tempo havia mudado. Já sentia saudade o butiazeiro do constante farfalhar dos antigos pés, orgulhosos, alegres e irritantes que eram.

Animais distantes, que só viu no começo de sua vida, voltavam de uma era antiga em busca de comida e abrigo. Isso pelo menos foi uma surpresa mais agradável. Ou será que não?

O sol ardia diferente. Sentia. As tardes e noites musicais já tinham tanta pompa e vigor como antes. Os ventos ora cessavam, ora corriam, demasiado. Os tempos mudaram, assim presenciava.

Há algum tempo, ano após ano vinha uma máquina agitar os pés de feijão. Os homens secavam o feijão amarrados em feixes. Quando tinham ponto eram levados e jogados em uma máquina. As sementes caiam de um lado, e a palha de outro. Durava poucas horas, tudo já havia sido batido. E os homens levavam triunfantes seus sacos de feijão.

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Começava uma manhã típica de verão. Os morros cercados de névoa. Aves se agitavam na mata. O butiazeiro, já antigo, ainda suportava o peso das estações. O dia nasceu, não chovia a alguns dias, porém tudo parecia ainda úmido.

As mudanças já prometiam algo para o futuro. A presença do agricultor ainda era constante. Mas havia diferença. Alguns jovens passavam aqui e ali, mas havia tempo não aparecia mais crianças. Os caminhos que os meninos percorriam desapareceu. Benditas mudanças, não suportou todas elas? Mesmo assim o eco de dias antigos vinha visitar suas sombras. A memória estava segura em sua casca. Sua flor em época era amarela e chamativa aos insetos. Cachos de fruto azedinho e doce era ainda regalo de algumas criaturas. Os coquinhos rolavam no chão entre as folhas secas que caíam. Talvez suas raízes guardassem algum saco de estopa dos tempos passados.

Veio a agricultor, via a distância aquela árvore. Trabalhou um pouco quando rugiu uma máquina em algum lugar da terra. Subia e subia, sabia que subia porque o som estava mais perto. Atenta, muda, parada a árvore presencia a máquina que sobe. A máquina parou e o homem falou alguma coisa, a máquina entendeu.

Subiu a máquina os terrenos ainda limpos do roçado. Uma concha mergulhou a terra. A terra mexia, tremia. O mundo balançava. Suas folhas dançavam uma última vez, como nunca tinham dançado. E o ar invadiu a terra, arejava as entranhas da terra, as raízes. Voavam as aves para longe, fugiam alguns insetos. O céu, desabou.

Enfim era chegada a sua vez? Quão frágil é a vida, quão momentânea ela é.