A Última Serenata do Seresteiro Festeiro

Era um vagabundo. Tal opinião era unânime entre os pais das moças que tiveram de ser enviadas à parentes distantes para que a virtude da castidade não lhes fossem conquistada por aquele rapaz. Eram outros tempos, e não havia quaisquer outra definição que se pudesse atribuir a um jovem que passava o dia acompanhado de um violão a compor canções e entreter os amigos e a noite, entoava as melodias que atravessavam as ruas de calçamento, as janelas de madeira e os corações das belas donzelas da cidade.

Um vagabundo. Apesar de todos os preceitos que regiam aquele período regido pelo conservador véu dos bons costumes, tinha o rapaz sobre si mesmo a ideia de que era um artista, ou no máximo, um saltimbanco, porque lembrava do nome vindo de uma história que muito gostava na infância, mas nunca um vagabundo. Acreditava que estes, eram gente de entraves, que viviam a incomodar outros com ideias egoístas e propósitos escusos, que por vezes prejudicava outros para benefício próprio. Definitivamente ele não era assim: se incomodava, mas tinha por pretexto o amor a arte e a certeza de que sua música levava alegria, encanto, nostalgia e promessas aos seus ouvintes. Justificava sua fama de conquistador, principalmente para as moças iludidas, que o amor era como melodias que só se encaixam em certos momentos na vida e que deveriam ser livres para os ouvidos e nunca veladas dentro de presas partituras mofadas em livros de música ou discos de vinil. A música que toca muitos corações lhe era mais bela do que aquela que toca um único só. E o que pensava da vida? Ah, a vida era uma festa, uma eterna cantoria, cujo o único companheiro era o violão que trazia às costas, e que nunca o destratava nos melhores momentos, nem o abandonava nos piores. Ele era grato e convicto de que não mudaria nem um detalhe dessa vida errante. Tinha a vida escrita de forma solta e livre, até o dia em que uma cigana leu-lhe a mão em troca de algumas moedas, e ele viu que nas linhas tortas em que Deus escreve certo, estava a certeza de que sua vida logo estaria preso a algo impossível de se desvincular.

A previsão o deixara preocupado. Mesmo que a cidade estivesse em festa pela chegada do circo, ele andava cabisbaixo, pecando até mesmo na afinação do violão, que parecia entoar apenas melodias tristes. Não foram poucos os que lhe questionavam se tinha morrido alguém, ou se estivesse sofrendo de alguma indisposição. Havia perdido um pouco do brilho que possuíra.

Durante a caminhada sem destino algum, ouviu um barulho de tiro peculiar, ao qual logo associou à corda do violão arrebentando. Entretanto, o susto também provocara a atenção de uma moça que passava alheia pelo seresteiro. Ao virar para retirar o instrumento das costas e repará-lo, os olhares dos dois se encontraram: nesse momento, ele teve a revelação de que se algum dia a música tomasse a forma humana, escolheria as formas daquela moça, estrangeira, porque ele nunca à vira por aquela região. Nada menos que um divino milagre. Soube também que todas as músicas de amor deveriam ter se inspirado nela, no sorriso de sereno da manhã e no olhar de promessas que lhe fora retribuído pelo encontro.

Não precisou andar muito para que soubesse se tratar de uma moça que viera junto do circo. Também não houve necessidade de dispor de muito tempo para compor as canções e arranjar os companheiros para esta que, sem que soubesse, seria sua última serenata. Isto porque o pai da moça do circo, já alertado sobre a reputação do rapaz, tinha se precavido com uma extensa vigilância para com a filha. Porém, não há vigia que seja imune a cochilos. Não tardou para que surgisse uma ocasião onde o homem tivesse de se ausentar do acampamento, o que por coincidência do destino, fora uma das mais belas noites de lua cheia daqueles dias. Fora assim, sob a luz da lua e em meio ao silêncio do acampamento que a melodia apaixonada da serenata despertou a todos. Apaixonada, a moça comovia-se com a melodia, completamente entregue. Mas não houve beijo, nem mesmo um abraço. Interrompendo a canção, um clarão correu pelo lugar. O barulho de tiro ecoou, mas as cordas do violão permaneceram intactas. O seresteiro caiu no chão, vítima da excelente mira do pai da moça. Todos correram, inclusive o seresteiro, recuperando-se do choque, mas sentindo a vida esvair-se junto da fonte de sangue que aflorava de seu peito. Todos perderam-se no mato, restando apenas o violão, ensanguentado e abandonado no acampamento.

A moça chorou e o pai, ainda com a espingarda fumegante, estava convicto de que seria questão de tempo até o rapaz cair morto. No dia seguinte, seus amigos e alguns participantes do circo procuraram o corpo, mas não encontraram nada além dos rastros do sangue coagulado deixado pela caminhada. Concluíram então que havia sido devorado por alguma fera e arrastado para outro lugar. Na certeza da morte, a existência do seresteiro passou a existir apenas nas recordações dos moradores daquele lugar. As ruas ficaram submersas sob um silêncio quase sacro, rompido apenas pela história de que, uma semana depois do ocorrido, a moça do circo havia empregado fuga, desaparecendo na garupa do cavalo de um indivíduo misterioso.