E aqui estamos, mais uma vez
Segue-se o dia como foram os tantos outros, uma silhueta por vezes difusa através do vidro leitoso, embaçado.
Daqui, posso vê-lo no beiral da janela, com os joelhos dobrados onde apoia os cotovelos, certamente, hoje, está triste, o dia está triste.
Este anônimo, e bom que assim seja para que eu não me aprofunde em mais dores, este meu vizinho desconhecido, passou a frequentar o local há uns 12 meses, não há momento especial, não o vejo em horário específico, apenas ali está, por vezes, em dias difusos.
No começo, nas primeiras vezes que o notei, fiquei imaginando o motivo desta atitude; a novidade apenas instigou minha curiosidade, destas em ocasiões dispersas, quando congelamos os olhos em lugar nenhum.
Aos poucos, aumentou minha vontade de entendê-lo.
São várias as vezes que posso ver, entre as frestas da janela entreaberta, que enxuga lágrimas. Sua silhueta lateral não me permite identificá-lo, mas possibilita que eu compreenda seus sentimentos.
Certamente, sozinho, está fugindo de algo e, ali, naquele canto, de alguma forma, busca uma saída, um modo de exprimir sua aflição. E quantos estão assim neste Pálido Ponto Azul de Sagan?
Esta solitária silhueta anônima poderia ser por mim instigada a se identificar, afinal, a distância de poucos metros entre nossas janelas possibilitaria atender a um chamado, um “Ei, você, do que precisa?”. Mas, minha inanição, por vezes covarde, transformou-se em rotina. Desde então, apenas me ocupo em observar, em dividir com ele meu particular afeto; passei a admirá-lo.
E aqui estamos mais uma vez, eu, ansiando por suas soluções, com aumento do meu pensamento confiante, seja lá o que for sua necessidade. Ele, continua lá, enxugando lágrimas, certamente envolto em seus pensamentos, complexo, castigado, sofredor.
Segue-se o dia como foram os tantos outros, uma silhueta por vezes difusa através do vidro leitoso, embaçado.