Entre duas pontes

O mar é um espectro roxo-azul atrás da rua atrás da calçada. Um abismo escuro no escuro mais profundo, forjado do prenúncio de duas vigilantes pontes em cada esquina do território-areia, e do ultimo brilho forasteiro-fantasma que restou de um sol quente devorado pela noite fria. Forço os olhos e tento distinguir as feições de uma onda específica cheia de volume, crescendo por cima das outras, como se pelo menos essa eu tivesse que ser capaz de salvar do abismo. Ondas-declamações de um mar invisível nos meus olhos invisíveis. Ruas e calçadas vazias. Ruas e calçadas tão feitas quanto desfeitas. Me sento sobre as lajotas arrancadas ou nunca aplicadas do batente comprido da sombra do aquário abandonado, obstinado com a missão de salvar quantas ondas eu puder, ou ao menos aquela, antes de realmente ter que ir embora. Vou medindo o tempo de acordo com o tamanho da minha solidão, mas também estou com dificuldade de apreender esse volume. Não quero perceber que quase todas as últimas pessoas já se foram. Nem todas. Uma figura vem vindo ainda, caminha no canto do meu olho, e ao invés de sentir medo me agarro nela para continuar encarando as ondas e pensando na rua e na calçada. Foram agredidas ou abandonadas? Essas lajotas... esses paralelepípedos alvoroçados... Talvez seja tanto isso quanto aquilo. Tanto agressão quanto abandono me seguram de noite na praia vazia. Uma figura se aproxima. Pontinhas de cigarro que o chão fumou a maior parte estão como respingos da chuva de gente que passou aqui mais cedo. De dia a praia estava lotada. As pontes eram braços estendidos no território-areia e as pessoas eram como ondas indo de encontro as ondas. Chegando a noite foram embora como se escoassem depressa, de volta. E eu que não tive mais pra onde ir fiquei solto no espaço evitando o tempo. Agora essa figura se aproxima, se senta. Escolhe um paralelepípedo solto em cima de outro em cima de outro, banco improvisado de algum passante anterior, com certeza. Me irrito da existência dessa arquitetura quase exata, mais do que me irrito de estar prestes a ser assaltado ou sequestrado ou estranhado. Uma dessas. Espero alguns segundos antes de admitir que não estou só, segundos cedidos com paciência pela figura. Não, não é um assalto.

- tá aqui desde que horas?

- desde mais cedo...

Olho nos olhos, figura de feições quase invisíveis, como as ondas. Espectro turvo, roxo-azul como o mar.

- tá procurando o que aqui?

- procurando...?

- eu tô procurando uma coisa.

Me ajeito um pouco, mas respondo-pergunto muito sério, tentando deixar bem claro que não tenho nada pra oferecer.

- o que? Procurando o que?

Procurando as minhas mãos, a figura sorri de dentes branquinhos e comprimidos. Minhas mãos estavam cerradas no meu colo. A figura percebe que não vou desfazer os punhos e me segura pelos pulsos, mas sem ameaça. Sorri dentes de lua meio quebradinhos, minguantes. Ou crescentes. Eu nunca sei.

- tô procurando matar...

Sorriso de lua minguante-crescente atravessa o céu da boca, um mês inteiro se passa, depois um trismestre, um semestre, um ano, vários anos. Minha solidão acaba tão rápido que sinto a medida do tempo arrebentar a régua.

- eu também tô procurando... Eu tô procurando... Morrer...

Desfaço a ameaça dos meus punhos e vou revelando o centro da palma da minha mão como se o movimento dos dedos se afastando fosse uma luz que crescesse no centro do palco. No meio da minha mão, os meus dentes branquinhos, comprimidos. Muitos comprimidos. Eu já possuído de alguns, esperando os próximos descerem ao encontro do abismo. Quantos fazem um sorriso? Essa estatística ninguém nunca me contou.

- mas eu não vou matar você... - o sorriso da figura aumenta e o meu que quase não existia desce e cai de uma vez e se quebra em espumas efervescentes no meio da areia.

- caralho... - tento puxar meus pulsos do toque daquela mão, mas sou contido com mais veemência.

- o mar...

- Me solta!

- vai atravessar a calçada, vai atravessar a rua...

- qual o seu rosto? Qual o seu nome?

- a onda vai arrebentar o abismo, o invisível vai se declamar sobre ela...

- o que você quer? Quem é você?

- ...e então você saberá meu nome e conhecerá a minha face. Eu quero matar, mas não quero matar você. Eu sou. - e sorri.

Tenho vontade de chorar como se vivesse todas as tragédias e frustrações do mundo ao mesmo tempo. Lutar contra esse sentimento me dá a sensação de que estou tentando me encontrar em algum território-areia que não existe. A única conciencia que consigo formar é a de que já devo estar muito drogado, e tão drogado que devo ter entregue ao primeiro que passou o meu rosto e o meu nome e por isso meu reflexo é um espectro indefinido na minha frente. Uma figura. Eu não lembro mais de nada. Não lembro se tive rosto, se tive nome, nem o que eu quero, nem quem eu sou. Não lembro que horas cheguei ali, apesar de saber vagamente que foi mais cedo e que a praia tava lotada. Ou só sei disso por causa da denuncia dos cigarros que o chão fumou? Caralho... Eu mesmo queria ter um cigarro. Queria acender e assistir o ponto de fogo-estrela se aproximar da minha boca enquanto trago, como se trouxesse o sol para o meu peito. O fogo-estrela se afastaria do mar, deixando pra trás a onda que eu não salvei e as próximas que se afogam umas nas outras. Como ninguém teve a decência de jogar um fogo-estrela-luz nesse mar? O mar se morre com tanta inocência e tão invisível aqui, na sombra do aquário abandonado, nos braços carinhosos das pontes, dentro do sorriso arrebentado do meu olho. Eu queria poder salvar cada onda-declamação do esquecimento e do vazio, era isso que eu estava tentando fazer...

Uma lembrança-sensação-pensamento escorrega no fundo da minha cabeça, e fica lá por menos de meio segundos como quem não quisesse nada. Fogo-estrela-luz, postes, eram o que mais não faltavam a alguns metros dali, em outro território-areia atrás de outra rua e outra calçada. Lá o mar fica quase branco de tanto holofote no seu palco-areia-desfile. Ele vem caminhado como uma celebridade forasteira. Cumprimenta outras celebridades na rua. As pessoas se acham estrelas, mas não trazem luz nenhuma. Só estão debaixo de postes.

- eu vou atravessar as calçadas e as ruas. Vou entrar nos muros e vou entrar nos homens... - a figura vai desfazendo a pressão nos meus pulsos e os massageia com os polegares, fazendo um sangue de vida circular formigando. - Acenda seu fogo. - um Beck no céu da minha boca - Venha comigo.

Caminhamos em direção a uma das pontes na margem esquerda, a ponte que foi construída até o fim, mas que o mar já arrancou a maior parte. Uma ponte antiga como uma cantiga. Vou mais me concentrando em fumar para que a rigidez do meu corpo amoleça logo e eu consiga dar os passos um atrás do outro tropeçando cada vez menos.

- isso é um sequestro?

- não.

- estranho...

- é um conto.

- de quem?

Chegamos no final da ponte velha, tão dentro do mar quanto é possível.

- é meu. - mas ao invés de apontar para si, a figura aponta para o mar - e é seu - mas ao invés de apontar para mim, aponta para si mesma - e em breve - nos sentamos com as pernas para fora da ponte numa parte em que a silhueta do guarda corpo de concreto está mordida - em breve esse conto não será mais deles - a figura fala para o vazio.

Solto a fumaça em ondas e elas caminham lá para baixo. Essa ponte é velha, muito velha. Expõe suas ferragens como rugas. Já perdeu os cabelos da cabeça e os fios-concreto caíram em cima de uma pessoa. Acidente terrível. Essa história eu sei que é recente, lembrança-sensação-pensamento de que a vi no jornal.

- eu vi a hora que você chegou. - agora a figura não olha mais cuidadosa para mim, como um reflexo bondoso. Está fosca, compenetrada. Suas informações são palavras misturadas às ondas. Ela está na mesma lingua das declamações que antes estavam quase inaudíveis. Está se erguendo sobre a minha cabeça, cheia de volume - Foi mais cedo do que você pensa. Você já estava aqui antes do sol nascer. E ficou aqui até muito depois dele se por.

- foi uma perda de tempo... Já tinham ocupado toda a sombra quando eu cheguei, tinha muita gente na praia hoje...

- é porque é fim de ano, feriado.

-... e agora... Agora eu não sei porque ainda estou aqui...

- para morrer.

- é mesmo...

- e eu vim para matar. Mas não vim matar você.

Começo a me irritar.

- o que caralho tu veio matar então?

- tudo. Menos você. Vou atravessar a calçada, vou atravessar a rua, vou entrar...

- ... Entrar nos muros e entrar nos homens...

- ...e aí você saberá meu nome e conhecerá a minha face. - sorriso de lua crescente - qual o seu nome?

- o meu nome...

Acho engraçado. Lembrança-sensação-pensamento, meu nome é quase desconhecido. Quase invisível. Quase inaudível. Meu nome é sempre quase muitas coisas, e quase um nome de verdade. Quase.

Penso que se eu não falar nada a figura vai acrescentar alguma coisa por cima, que se sedimentará no meu silêncio que se tornará concreto em mim. Mas ela espera, sem temer o escuro vazio abismo, me cedendo de novo todos os segundos que eu preciso. Não, isso não é um assalto. A figura-pergunta espera que eu entregue essa resposta por decisão própria e apenas eu tenho o poder de entregá-la. Nem a fumaça se atreverá a falar por mim.

Falo meu nome.

É como se eu o falasse pela primeira vez. Como se eu o escutasse pela primeira vez. Caralho...

- e o nome deles, qual o nome deles?

Caralho...

- não sei, não quero pensar nisso. - Mas já estou pensando. Estou lembrando-sentindo-pensando nas pessoas debaixo dos postes e de início vejo seus rostos com muita clareza de detalhes. Seus olhos desfilam ao meu encontro. Seus sorrisos são definitivamente minguantes. Eu sei o nome delas, sei o sobrenome delas, sei o pronome delas. Eu sei de todas as cores dos corpos delas. Informações muito fáceis de lembrar.

Uns segundos depois, entretanto, tudo fica um pouco confuso. Esses rostos dentro da minha memória começam a se enrolar uns nos outros e começam a se fundir com o espaço. Suas feições viram uma só monstruosidade, leviatã, imergindo com escamas de couraças e dentes e garras no meio da cidade. Monstro da cidade. E a cidade está na minha frente. Parece que vai se abrir do próprio mar turvo em que minha onda de fumaça foi se perder. Assim que fumaça e água se encostam fico assustado como se o leviatã das feições fosse arrebentar as águas ali mesmo agora mesmo. Tenho certeza de que ele me arrastará pelos dentes para o meio do abismo da agua-cidade. Caralho, caralho, caralho...

- vamos embora daqui, vamos pra outra ponte - eu já estou me levantando e dou passos muito largos a frente.

Nesse mesmo instante uma saraivada de sons de tiro me contém. Caio no chão por instinto, agachado, segurando a cabeça e o Beck que ainda tava pela metade cai da minha mão, rola no concreto e cai no mar. O mar engole o fogo-luz do meu beck. São sons de tiros enchendo o céu inteiro, são estrelas. São fogos de artifício.

Maldito natal, maldito ano-novo, malditas datas, maldito tempo. O tempo arrasta a carne pra dentro de um abismo-precipicio pelos dentes, como um monstro leviatã.

- o problema da carne não é o tempo, são os nomes...

- caralho, vai tomar no cu porra

- os nomes também são a salvação da carne - a figura me ajuda a levantar - assim como o tempo.

- salvar quem? Do que?

Do abismo invisível. A figura faz um único movimento de cabeça e aponta para o mar, mas o mar é um grande reflexo escuro do céu escuro. Nem fogo nem luz. Tenho a sensação de que não existem mais ondas ali também. Nada a ser salvo, nada. Compreendo. Aceno. A figura ainda segura minha mão depois de me garantir de pé. Vamos caminhando juntos até o início da ponte velha, passamos de novo pela sombra do aquário, atravessando o território-areia e a outra ponte na margem direita começa a se revelar com mais detalhes.

Essa ponte nunca foi construída até o fim. Virou ruína antes de sequer existir. Arruinada. Nem sei se ela tem nome. Sei que quase nunca fico perto dela e dos seus pés tímidos caminhando da areia e morrendo inacabados no mar. Aquela ponte não é uma ponte, é outra coisa. É um muro limite naquela praia. Depois dela a faixa de areia estendida amigavelmente vira um amontoado de pedras pontiagudas escoradas na margem de uma calçada fina, canal, passagem. E depois dessa passagem a areia se abre novamente e os postes começam a aparecer. E as pessoas nomes sobrenomes pronomes e cores das quais eu lembro muito bem escorregam pela areia lisa.

A lua fica um pouco para trás quando chegamos na outra ponte. É dia novamente. Como se amanhecesse. Mas não parece ter se passado tanto tempo. Talvez seja o efeito do novo em contraste com o velho. Acende o mundo, recria a realidade. Não há como subir na ponte, pois o piso nunca concretado é apenas um radicular alinhamentos de pilares e vigas vazias. Ficamos no meio como se estivéssemos numa catedral sem teto, eu e a figura e um dia amanhecendo sobre nós, sem que a noite tenha sequer passado.

Os pilares da ponte catedral inacabada enquadram o mar como se fosse um santo altar de tudo que é vivo. As ondas são a própria frequência de uma respiração universal e unissona. Sinto que preciso confessar algo.

- eu não queria morrer nessa cidade

- você não vai morrer. Eu não vim te matar

- você não entende, eu já estou morrendo

Comprimidos, dentes cerrados, travados uns contra os outros.

- não se preocupe, essa história sou eu que conto e você não vai morrer. Eu - a figura aponta para mim - não vim te matar - a figura aponta para si - nós - a figura eu e o mar - viemos para matar eles - eles. - acenda seu fogo - um Beck no céu da minha boca. Céu estrelado - luz. Atravessa a calçada e a rua, entra nos muros e nos homens - o dia ficando mais claro,as ondas declamando a salvação no fundo da ponte catedral - você saberá seu nome e sua face. Você é.

Tiros, luzes no céu, passado e futuro, presente. Mar, mar, mar infinito. Eu engulo a Cidade.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 11/01/2024
Reeditado em 11/01/2024
Código do texto: T7974434
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