Vô que tinha avô
Crianças são cruéis. No primário, uma professora explicava sobre a árvore genealógica. Pomposo e também idiota, disse a “mestra” aqueles que estavam vivos: pai, mãe, avô, avó, 5 bisavós e um tataravô. A educadora teve a infeliz ideia de complementar: “o seu avô tem um avô”. E aquilo se transformou numa chacota interminável, hoje seria “bullying”. Recebi o apelido o “vô que tinha avô”. Como sabemos que a felicidade de pobre é ser infeliz, as “pestes” começaram a nomear seus parentes mortos como se fosse uma competição e teve uma menina que entrou na classe gritando que a tia havia morrido, sendo aplaudida como uma artista. Desejava ter um defunto familiar para chamar de meu. Beijaria sua testa e “desaguaria” sobre o fim da “triste” sina da família “Highlander” e os coleguinhas beijariam minhas mãos pedindo “perdão, perdão”. A minha família era gigantesca, nos natais, se reuniam mais de 100 pessoas. Por muitos anos escutei as mesmas piadas e histórias dos “imortais”. Meu avô contava uma, que ele estava no cemitério e chegou uma criança com a urna de um parente e falou ao meu bisavô: “aqui estão as cinzas do meu avô” e o meu “Bizô” respondeu: “seu avô fumava, hein”. Outra lembrança recorrente eram os inúmeros idosos, alcoolizados, se despedindo de uma centena de pessoas, uma por uma, afirmando ser o último natal deles vivos. Convivi com todos por mais de uma década, dando “adeus”. Até que um dia fui avisado que eu iria no meu primeiro velório familiar. Não podia me conter, teria finalmente o meu “defunto de sangue”. Queria dar os pêsames aos enlutados dizendo: “foi uma boa mulher, tenha orgulho”, poderia chorar e esfregar na cara de todos os pequenos “canalhas”, que na minha família também havia mortos, os nossos cadáveres. Entrei na sala com o corpo presente, me deparei com a morta, tia da minha bisavó, Angelina, 96 anos. Tenho a recordação da filha lamentando: “ela tinha tanto o que viver”. Na segunda-feira, gritava e “comemorava” diante dos colegas, até que um gaiato perguntou quem era a defunta. Inocentemente respondi e a paz terminou ali, com a decretação do meu novo epíteto: “tia da minha bisavó”.