O pequeno pensador - um encontro consigo

 

 

Anacleto é um caso sui generis. Até hoje ninguém sabe se seus conselhos advêm da experiência, se de uma sapiência inata, ou, ser vêm de assopros do universo. O fato é que há algum tempo tem sido confidente de muitos que sempre lhe confiam seus traumas. E todos saem da consulta com ideias animadoras, nas quais depositam fé, pois ele trata os problemas com muita propriedade, de tal forma que parece já tê-los vivido.

 

De fato, e isso ninguém sabe, é que de todos os problemas que lhe trouxeram, não houve um que não tivesse vivido. É um poço deles. Acontece, e disso ele não se dá conta, é que das soluções apontadas e ideias dadas, jamais houve uma sequer que não caísse como uma luva em seus próprios transtornos. Na falta de coragem de as aplicar, prefere conscientemente pensar que as situações são diferentes.

 

Para alguns, Anacleto é um sábio. Para outros, um filósofo. Para muitos, simplesmente um pensador. Alguém que sem problema algum, empresta seus ouvidos pacientes aos relatos de sofrimento das almas que necessitam ser ouvidas.

Não é falso, quer ajudar realmente. Tampouco soberbo, apenas não sabe que tem medo. Em verdade, não tem consciência que vive numa concha. Acima de tudo, é generoso. Na acepção da palavra, um humanista. Ouve de fato com todos os sentidos, as pessoas que o procuram. Isso já é de grande ajuda num mundo onde quando muito, só se escuta. Serve de leito para que deem vazão àquilo que os tortura. Não faz julgamento, só não contém as ideias que surgem em sua mente como solução e nas quais, acreditam os que as ouvem. Seus consulentes saem aliviados e dispostos a colocarem em prática aquilo que lhes diz para fazer.

 

Hoje de manhã, pouco antes da hora do almoço, tomava uma cerveja sentado à mesa do bar do Jacinto quando Fabrício apareceu. Tinha o olhar cansado, cabisbaixo e quando o viu sozinho na mesa que ficava distante do balcão e o bar quase vazio, sentiu a oportunidade de lhe ser mais um a desabafar. Aproximou-se e com um pouco de receio disse:

 

- Anacleto, salve! Preciso muito falar com você. Posso sentar-me a mesa?

 

- Sim, respondeu cordial.

 

- Não sei por onde começar. Acho melhor entrar a dizer que penso em morrer.

 

- Por que? Assim tão jovem e cheio de vida. A julgar pela aparência, não se vê que tem problemas.

 

- Só parece, caro filósofo. Sou a criatura mais desajustada desse mundo. Quando falo sério, riem. Se rio, me desacatam. Sendo espontâneo e cordial se aproveitam. Fingindo indiferença me desumanizam. Sou invisível. Ninguém vê meus sentimentos e sendo o que sou, eles, quem haverá de respeitar o que não existe? Parece que ando em sentido contrário. Tenho a impressão de que vivo em um mundo que não existe para os outros. Entende o que digo?

 

Anacleto assentiu com a cabeça.

 

- Amo uma mulher com todo o meu coração. Sinto-a com todos os meus sentidos enquanto o meu pensamento não precisa pensar em outra coisa. Colho o quanto posso em meu tato, o toque das suas mãos e no seu abraço, o calor do qual minha alma se alimenta, porque concebe. Amo tanto que às vezes penso que me ama também. Qual! Nem se dá conta que existo. Quando nos encontramos na rua, sorri um sorriso consentido pela graça, mas quando passa, não olha para trás, nem atira um lenço ao chão para que eu a siga por pretexto.

 

Com isso, quero dizer que o pior castigo é viver invisível. Diga o que faço, Anacleto.

 

Assimilara o drama com o relato do rapaz, e quando já estava pronto para dizer ao jovem o conselho nascido da conclusão, surge Rubem, vindo do fundo de outra história e fala imperativo:

 

- Cala-te, hipócrita! Resolve-te a ti mesmo.

 

Sem se despedir de Fabrício, sem dizer palavra, Anacleto, de repente, se levantou do banquinho e saiu do bar sem sequer pagar a conta. Saiu pensando no quanto está distante de Cecília, a moça que nem de longe imagina que vive em sua cabeça.