FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

 

CAPÍTULO 4

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ENQUANTO O LAND ROVER RANGER percorria pela Rua Húngara, pacata naquela hora do dia, até mesmo em frente aos pontos de comércio como Werkomura, uma loja de materiais elétricos; a Gavelar, uma Biblioteca jurídica; a THT Tecnologia Eletrônica, Sr. Lopes tentava entender a visão que tivera de Leonor diante da antiga casa da Rua Tonelero.

— Estarei ficando demente? — Ele havia perguntado para si mesmo em voz alta.

O motorista desviou a atenção do trânsito e observou seu patrão através do retrovisor e o viu encolhido no banco traseiro. A bengala de caminhada que trazia sempre grudada nas mãos, descansando no colo, dava a impressão de ter entregado os pontos. O olhar perdido através do vidro do carro parecia olhar, mas sem contudo ver, o panorama ao redor.

Para o motorista, as atitudes de seu patrão naquele dia, fugiam completamente da rotina diária normal.  Sr. Lopes pouco saia de casa e quando o fazia era para ir à Imobiliária. O motorista, portanto, não tinha um horário de trabalho cheio de eventos. Chegava a ser maçante. Contudo, o contracheque no final do mês compensava os dias monótonos vigiando ou lustrando o Land Rover Ranger. Por isso, naquela tarde, estranhou o itinerário que seguiram, embora isso o enchesse de prazer, pois significava sair de certa clausura e tomar outros ares.

O comportamento do Sr. Lopes, de fato o preocupou, pois ele não era de demonstrar sentimentos, de tomar atitudes reflexivas e muito menos falar sozinho.

— O que houve senhor? — perguntou.

—O que houve? —Sr. Lopes desviou a atenção da rua e fixou seu olhar no retrovisor, onde via a imagem do motorista lhe perscrutando. Embora isso o incomodasse, pois detestava ser observado, respondeu:

—Nada demais. Apenas um fantasma do passado que veio me atormentar.

—Está tudo bem com o senhor? — O motorista pareceu ainda mais preocupado diante daquela resposta que, para ele, não pareceu uma brincadeira. Até porque Sr. Lopes não era dado a brincadeiras. Cinismo sim. Será que Sr. Lopes estava apenas sendo cínico? Porque fantasmas não existem.

Sr. Lopes parecendo adivinhar o pensamento do motorista respondeu:

 — Hoje descobri que fantasmas existem. E estou falando sério.

O motorista fez um ar de espanto ainda maior.

—Se fantasmas não existem, eu com certeza estou ficando demente. —Sr. Lopes admitiu. — Mas não vá me dizer agora que você também está achando que estou demente. Por favor.

—Imagina senhor. Claro que não. — Mas no fundo, o motorista já estava começando a acreditar numa possível demência senil.

— Então siga em frente.  — Sr. Lopes balançou a mão no ar e o motorista revirando os olhos voltou a atenção ao trânsito.

Sr. Lopes, por sua vez, voltou a atenção para os acontecimentos daquele dia, e continuava a buscar em seu íntimo, uma explicação lógica.

Naquela manhã, enquanto tomava café, uma vontade estranha de rever antigos lugares de seu passado havia tomado conta dele. Para a psicologia essa tendência é natural em pessoas idosas. De repente, elas se pegarem revendo antigas cartas e fotografias, examinando papéis, relembrando histórias antigas... Até ai, tudo bem.  Mas, que outra justificativa poderia haver para a visão, naquela tarde, de sua esposa Leonor ainda jovem?  Isso não era normal e Sr. Lopes preferia cogitar a ideia de demência.

 

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Na esperança de contestar ou comprovar a sua alucinação, Sr. Lopes deu ordens ao motorista para levá-lo ao antigo palacete da Rua Bom Pastor, onde vivera durante um tempo com a família depois que enriquecera. Desde que ficara sozinho no mundo, não voltara mais lá.  

 Naquela tarde, no entanto, Sr. Lopes se permitiu parar defronte ao belíssimo palacete projetado em estilo Mourisco, cuja suntuosidade da arquitetura de suas torres e cúpulas ricamente entalhadas lembravam um palácio.

Sr. Lopes suspirou, revendo a fachada frontal do palacete com suas antigas escadas de mármore, a varanda inferior e superior que lembravam uma torre oriental terminando em um minarete.

De repente foi como se ele se visse atravessando o Hall de entrada inspirado numa Mesquita e entrando no exuberante átrio central com seus cinco metros do chão até uma claraboia com vitrais coloridos, além das colunas e arcos em estilo árabe, todos com arabescos rendilhados, afrescos e relevos. Sr. Lopes se viu percorrendo também cada cômodo amplo com suas janelas e portas enormes recortadas de arcos árabes e o amplo terraço superior que permitia acesso ao minarete com sua vista esplêndida.

 Sr. Lopes adorava aquele palacete. Ele representara durante algum tempo, o seu status e a ilusão de ser feliz com sua família em meio a tantos adornos e luxo. O Palacete estava fechado desde que perdera toda a família e se mudara.

Sr. Lopes não quis entrar e muito menos descer do carro. Ele queria apenas relembrar a história escrita entre aquelas paredes bordadas.

Ali contemplando o majestoso palacete, Sr. Lopes não teve nenhuma visão real como esperava, para comprovar algum estado de demência. Ele teve apenas lembranças e a certeza de que não havia sido uma bela história. Fora uma história de orgulho, tristeza e dor. Na época ele não admitira isso, preocupado em seguir em frente. Mas agora tinha certeza. 

A primeira lembrança que surgiu foi a de seu filho Miguel e o dia em que ele completara dezenove anos em 1988 e já cursava o terceiro período de graduação em Administração.

Era manhã e Sr. Lopes, no dia anterior havia exigido uma reunião na hora do café, por isso havia uma tensão no ar naquela enorme sala que ostentava um belíssimo vitral de desenhos árabes. O sol daquela manhã já atravessava o enorme vitral e se projetava em fachos coloridos sobre os cristais da mesa, as paredes bordadas, o chão de granilite com peças de madrepérola incrustadas.  Um contraste com a cena morta da família que sorvia seu café cabisbaixa. Só o Sr. Lopes mantinha a cabeça levantada, sustentada por seu orgulho. E era, talvez, aquele orgulho, que mantinha abaixada a cabeça dos demais. 

 Sem rodeios Sr. Lopes foi direto ao assunto

— Miguel, a partir de hoje você assume a administração de meus negócios. —Ele havia dito com autoridade depois de sorver um gole de café.

— Está na hora de criar juízo. — Sr. Lopes ainda completou com o olhar sério empurrando para o filho uma enorme pasta retangular de couro preta, gesto que não deixava margens para questionamentos. — Aqui está o mundo dos negócios que você vai tomar conta a partir de hoje.

Miguel levantou os olhos assustados para o pai. Jamais imaginava que, em pleno aniversário, receberia uma responsabilidade tão grande de presente. Tudo que ele sabia era estudar e se divertir. Na verdade, ele estudava administração porque sabia que um dia substituiria seu pai. Só não esperava que fosse tão cedo. Mas não ousou questionar.

Leonor, a esposa do Sr. Lopes, baixou ainda mais a cabeça fingindo limpar uma migalha de pão no impecável jogo americano de cambraia de linho de cor palha com detalhe de renda renascença no acabamento. Nos últimos tempos ela se tornara ainda mais submissa. Não ousava enfrentar a autoridade do esposo. Portanto, não defendeu o filho que ainda nem se formara.

Mariana fora a única que parecia extasiada.

—Uau Miguel, você agora é um homem de negócios. — E levantou-se da mesa batendo palmas e abraçou o irmão.

Para Sr. Lopes, Mariana era como a luz que se projetava no vitral tal era sua espontaneidade. Tanto que era capaz de se jogar em seu colo sem se importar com seus defeitos. Miguel, ao contrário, criticava suas atitudes e defendia a mãe.

—Bem Miguel, já estamos atrasados para o trabalho. — Sr. Lopes consultou o relógio levantando-se. — Vista-se rápido que vou aguardar lá embaixo.

Naquele dia Miguel se vestiu formalmente a primeira vez e desceu as escadas do palacete seguido pela mãe que tentava ajeitar sua gravata. Depois ela ficou na sacada do torreão observando-o ir ao encontro do pai.  Na rua, Sr.Lopes o aguardava ao lado de um Opala Diplomata 4.1/S Automático 1988, o mais caro e o único carro de luxo de grande porte fabricado no Brasil naquele ano e para um público bastante selecionado.

Assim que o filho desceu, Sr. Lopes entregou-lhe as chaves dizendo:

— É seu... Feliz aniversário filho. — E sem mais palavras entrou no carro do lado do passageiro.

 

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As lembranças do Sr. Lopes levaram-no também ao limiar da escada em espiral que levava ao segundo andar do palacete. Ele vislumbrou lá no alto sua filha Mariana vestida de noiva. Naquele dia, a filha estava mais linda do que já era e ele correu para ajudá-la a descer as escadas de mármore branco.

— Minha princesa... Você está belíssima. — Ele havia dito e Mariana sorriu.

— Não exagera papai. — E deu a mão ao pai para descer o último degrau.

—Será que Jorge não vai desistir papai? —Mariana fingiu certa apreensão.

—Ele que experimente... Será um homem morto—Sr. Lopes respondeu e, pai e filha caíram na gargalhada. O eco dos risos alcançando os rodatetos altíssimos e bordados do átrio central.

Depois com emoção e orgulho, Sr. Lopes entregou a filha toda vestida de branco e de sonhos a seu futuro esposo.

—Cuide bem da minha princesa. Do contrário... Já sabe— E fingiu uma ameaça velada ao jovem Jorge.

A suntuosa festa que ofereceu depois do enlace foi um marco na sociedade paulista. No entanto, um ano depois do casamento, Mariana perdeu a vida no parto do primeiro filho que também não sobreviveu. No último mês de gravidez ela havia desenvolvido a eclampsia, uma complicação grave, cujas causas estão relacionadas com a falta de irrigação sanguínea da placenta, o que alterou a pressão do sangue, chegando a causar lesões nos rins, fígado, vasos sanguíneos e sistema nervoso central. Apesar dos tratamentos, ela e o filho não resistiram.

Jorge, o genro do Sr. Lopes, abalado com a perda da jovem esposa e do filho, saiu de carro a toda velocidade capotando na curva de uma estrada.  A imprensa insinuou suicídio. Mas a investigação policial preferiu encerrar o caso como acidente.

Sr. Lopes, diante dessa tragédia não demonstrou nenhum sentimento. Para ele, demostrar tristeza era uma forma de fraqueza e isso ele não suportava em si mesmo e nem nos outros.

No entanto, naquele momento ali diante do palacete relembrando, ele sentiu todo o peso da dor pela perda da filha.

—Minha filha... Minha princesa... — Ele disse em voz alta e a dor era tão grande que ele compreendeu seu genro que preferira morrer.

 

 

CONTINUA...

 


 

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