FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

 

 

CAPÍTULO 5

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LÍVIA FOI CAMINHANDO DEVAGAR PELA RUA DEPOIS do incidente com sua boina. Tinha se esquecido quase que completamente que estava indo à padaria comprar pão e leite.  O vento se acalmara e a seguia tocando-lhe o rosto quase como uma carícia. Lívia se sentiu mais leve. O coração se aquietara no peito.

Apressando os passos entrou no estabelecimento amplo e aconchegante da Padaria Laika com suas inúmeras mesas de madeira escura e cadeiras com encosto anatômico; suas vitrines cheias de delícias e um enorme espelho cobrindo metade da parede e de um lado a outro. A outra metade da parede que chegava ao piso era coberta de pequenas cerâmicas retangulares e amareladas num tom que beirava ao ocre.

A Padaria Laika, servia desde o pão francês a almoços Self-service e à La carte, além de um Buffet com todas as variedades de pães e biscoitos doces e salgados. Estava instalada no andar térreo de uma construção de dois andares com estrutura arredondada numa esquina da Lapa bem de frente a uma pequena praça com belíssimas árvores.

Era uma construção comum, exceto pelo fato de ser pintada de bordô escuro com detalhes brancos nas molduras das janelas e portas no andar superior e detalhes amarelos na fachada da marquise. A placa que nomeava o estabelecimento era também bordô com as escritas brancas. O andar térreo alternava paredes de vidro e de cerâmica simulando tijolos lisos.  Era, de fato, um lugar que Lívia adorava. Sua mãe lhe contara que fora fundada em 1959, tanto que a placa de frente ostentava essa data. A esta hora do dia já estava lotada de pessoas que iam fazer o lanche da tarde. 

A padaria ficava há uns quinze ou vinte minutos da casa onde Lívia morava, mas apesar da distância, ela preferia ir lá, pois aproveitava para caminhar e ver pessoas diferentes ainda que não conversasse com nenhuma delas, exceto Madalena, funcionária do estabelecimento.

— Boa tarde Madalena. — Lívia dirigiu-se à balconista de rosto amável e sorridente que sempre a atendia. Ela devia ter trinta e poucos anos e tinha um leve sobrepeso e sobrancelhas finas. Usava os cabelos cobertos com um gorro preto que simulava o modelo francesinha, cujo acabamento na cor bordô com emblema da padaria bem no centro, cobria metade da testa.

— Boa tarde Lívia. Como está? — Madalena veio logo atendê-la enxugando as mãos no avental também bordô que sobrepunha um camisete bege de gola padre, ambos com emblema do estabelecimento.

— Hoje quero dois pães de milho e uma caixa de leite. — Na verdade era o que Lívia pedia praticamente todos os dias e por isso, o “hoje” não soava tão inusitado. Ela nem se dava ao trabalho de olhar a variedade de pães do Buffet.

Às vezes a balconista já se adiantava ao pedido de Lívia.

— O de sempre Lívia?

— Sim Madalena... O de sempre. — E ambas riam.

Às vezes Lívia preferia levar, além do leite, um potinho de requeijão ou geleia.

— Como está sua mãe? — A balconista perguntou ao mesmo tempo em que observava o rosto melancólico de Lívia.

—Na verdade está muito fraca, se alimenta pouco, não sente o gosto dos alimentos... —Lívia foi enumerando as coisas que sua mãe sentia nos últimos dias. —Mas segundo Dr. Raul, é assim mesmo quando se está sob tratamento de quimioterapia. — Ela se lembrou da última consulta da mãe e o que o médico havia explicado.

— Olhe D. Esmeralda, sinto muito, mas tudo que a senhora está sentido é efeito do tratamento quimioterápico. A fraqueza, as tonturas, os enjoos...  Mas não se preocupe que é reversível depois que terminar o tratamento.

— Mas não tem como amenizar esses sintomas? —Lívia havia perguntado preocupada, pois sabia que o tratamento ia ser longo.

—Sim, tem alguns cuidados importantes como evitar a ingestão de bebidas junto às refeições, mas durante o dia a ingestão de líquidos é importante para eliminar os resíduos tóxicos do tratamento. Esqueça o café, pois favorece os vômitos. Além disso, evite fazer esforços que prejudiquem a digestão e descanse após as refeições. — disse levando-as até a porta. — Ah! Cuide das emoções— E bateu nas costas de D. Esmeralda.

— Quanto ao café... —D. Esmeralda fitou os olhos do médico com ar desolado, pois adorava café.

— Tudo bem... Mas uma xícara bem pequena de manhã e outra à tarde. — O médico disse adivinhando o desespero de D. Esmeralda diante da possibilidade de abandonar o café fumegante da manhã e da tarde. E D. Esmeralda suspirou aliviada seguindo a filha pelo corredor que dava acesso ao saguão de entrada do consultório.

 

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D. Esmeralda, mãe de Lívia, havia descoberto, há pouco tempo, um câncer de mama em estado avançado, e o tratamento exigiu uma cirurgia e várias sessões de radioterapia e quimioterapia o que a debilitou muito. Por essa razão havia parado de trabalhar como costureira em um Ateliê de alta costura na Lapa, que confeccionava, desde peças de alfaiataria, casacos, vestidos de festas a pedidos especiais como vestidos de noiva.

A mãe de Lívia não ganhava muito, pois era só uma funcionária, mas conseguia suprir com certa dificuldade as necessidades dela e da filha que ainda cursava o quinto período de graduação em Artes Visuais.

D. Esmeralda tinha apenas cinquenta e cinco anos e era viúva. O esposo Miguel havia falecido há dois anos, vítima de um infarto fulminante de miocárdio. Desde então tudo ficou mais difícil para ela e Lívia, inclusive financeiramente.

Miguel não deixara nenhum bem material que pudesse ajudá-las. Nem mesmo uma casa própria, apesar de ser filho de um senhor milionário que era dono de nada menos, que uma dezena de casas e edifícios de apartamentos. 

O pai de Miguel havia cortado relações com o filho desde que este se casara com Esmeralda, moça muito pobre de recursos, uma costureira de fundo de quintal. Aos olhos do pai de Miguel, ela era apenas uma caça fortuna e, por isso, deserdara o filho no dia do casamento que acontecera numa cerimônia simples na bela Igreja de São João Batista da Rua Tonelero.

A partir de então, Miguel e Esmeralda começaram suas vidas.  Ela como costureira, e ele quase um mês depois, conseguiu emprego como auxiliar administrativo do Uniclass Hotel Lapa que ficava a 1,67 km da Vila Romana onde residiam.  Não fora fácil encontrar esse emprego. Mas valeu-se da experiência e do nome de família até porque não era momento para orgulhos tolos, afinal agora tinha uma esposa que estava grávida.

Esmeralda continuou costurando em casa até depois do nascimento de Lívia. Assim que a menina completou cinco anos conseguira emprego no famoso Ateliê de Alta Costura e Bordados na Lapa, graças às boas recomendações de freguesas, algumas ricas, para quem havia confeccionado belos vestidos de festa.

 O tempo passou. Miguel e o pai nunca se reconciliaram, tamanho era o orgulho de ambos. Lívia, no entanto, nunca soube dessa história entre o pai e o avô que julgava morto. Os pais nunca falavam dele, exceto que tinha morrido assim como a avó Leonor.

Dois meses depois de comemorar as Bodas de Porcelana, Miguel partiu vítima de um infarto, deixando a esposa Esmeralda e sua filha Lívia que estava prestes a completar vinte anos.

Para piorar a situação, no ano seguinte, a mãe de Lívia foi surpreendida pelo câncer e, a partir de então, vivia praticamente de casa para o hospital.  Coube a Lívia, jovem ainda, a responsabilidade de cuidar da mãe, estudar e cuidar da casa. Por isso, foi necessário parar com os estudos temporariamente, mas continuou com as aulas particulares que havia conseguido através de seus professores. Ela precisava se manter de alguma forma já que a mãe havia deixado o emprego, e o benefício que ganhava do INSS em razão da doença, não era grande coisa. Contudo, Lívia não lamentava e, talvez por isso, a vida ia seguindo de forma até tranquila em seu cotidiano, como ir buscar todas as tardes o pão quentinho para o lanche.

 

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Enquanto Madalena, a balconista, colocava em uma embalagem de papel o pão de milho recém-saído do forno e pegava uma caixa de leite, olhava de um jeito maternal para Lívia. Ela sabia o quanto estava difícil para aquela jovem. Primeiro a perda do pai. Depois a doença da mãe.

— Olhe, tudo vai ficar bem. — deu um tapinha mãos de Lívia. — Sua mãe vai ficar boa logo. — disse entregando-lhe as compras.

—Espero que fique bem logo mesmo— Lívia respondeu sem acreditar muito nessa hipótese uma vez que a mãe parecia piorar a cada dia. Mas mesmo assim sorriu para a balconista e saiu novamente apressada pelas ruas, pois o incidente da boina já havia atrasado a hora do lanche de sua mãe.

 

 

 

CONTINUA...

 

 


 

Para ouvir o capítulo 05 no youtube acesse o link abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=A24BX11GWjQ

 

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