Conto factual

Mais uma vez aquela cena. O dono do imóvel enxotando o inquilino “vagabundo” que já lhe devia vários meses de aluguel. E embora isso acontecesse com frequência, o inquilino sempre conseguia um prazo a mais, pois era uma espécie de João Grilo letrado.

— Pague o que deve ou saia daqui!

— Mas não tenho dinheiro.

— Não tem porque não trabalha.

— Mas...

— Sem "mas". Já lhe dei várias chances, desta vez não tem conversa.

O inquilino percebeu que realmente o homem estava disposto a ir até o final. Apelou, se pôs de joelhos e implorou mais um mês de prazo para pagar a dívida inteira.

— Não caio mais nessa! Agora é rua!

— Você não pode me expulsar assim!

— Isso é o que veremos.

Pegou o celular e ligou para polícia. Na verdade, ligou para um policial específico, velho conhecido seu. O inquilino, como todo bom malandro, conhecia os seus direitos e estava tranquilo, sabendo que ao menos alguns dias teria para sair dali e arranjar outro lugar. No entanto, não esperava ver o que se sucedeu quando a polícia chegou.

— O negócio é o seguinte seu policial, este vagabundo me deve pra mais de cinco meses de aluguel. Já dei varia chances a ele, mas nunca me paga. Aqui está a autorização de despejo. Quero ele fora.

Entregou ao policial uma “decisão judicial” que ele mesmo redigira. O colega fingiu ler com atenção o papel e por fim anunciou, firme e frio como um bloco de gelo:

— Você vai ter que sair, cidadão.

O rapaz pensou em relutar, porém, para manter o mínimo de dignidade e não ser repelido à força como um cão sarnento, saiu com seus próprios recursos corporais. Pediu licença ainda para pegar seus poucos pertences. Minutos depois, saiu do barraco com duas mochilas tão puídas quanto abarrotadas, dando a impressão de que iriam rasgar a qualquer momento.

Uma delas ia nas costas, como o esperado, e parecia uma corcunda estranha e grotesca; a outra ele carregava, ou melhor, arrastava na mão direita, de forma que a cena era cômica ao mesmo tempo que penosa. Para completar, o resto dos livros e cadernos que não couberam nas mochilas, ele imprensava entre as costelas e o braço esquerdo, embora não fosse arriscado apostar que, antes de ele dobrar a esquina, um desses livros escorregaria e iria ao chão, o que daria ainda mais trabalho para aquele homem, não habituado às labutas físicas.

Aterrado pela situação inesperada, sem saber para onde ir e a quem recorrer, as lágrimas— “Raras como chuvas no deserto”, pensou o proprietário— percorreram suas faces.

Mas vendo aquilo, o dono do imóvel, vingado, comentou alto, para quem quisesse ouvir:

— Neste mundo mais vale uma gota de seu suor do que esse rio de lágrimas.

David Ariru
Enviado por David Ariru em 07/02/2024
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