FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

 

CAPÍTULO 9

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VOLTANDO DA PADARIA LAIKA, LÍVIA PAROU POR UM momento em frente ao charmoso portãozinho de ferro da velha casa onde morava.  Ela sempre se encantava com aquela bela casa rosada e seu estilo antigo que transmitia uma elegância rara nas casas atuais. Dizia-se que havia sido construída na década de 30 ou 40. Ela e sua mãe tiveram sorte em encontrá-la para alugar e com um preço bem acessível. Logo se percebia que o dono não lhe dava o devido valor. 

Os muros frontais da casa eram baixos, revestidos de pedras grandes e desiguais e de espaço em espaço havia grades de ferro com pequenas lanças nas pontas.  O alicerce das paredes frontais externas era alto e também revestido com o mesmo estilo de pedras do muro.  Ele seguia reto de ambos os lados, depois se arredondava e ia subindo até encontrar a base da janela que era uma veneziana de madeira.

Em volta da janela, assim como nos cantos das paredes laterais e rodatetos, havia detalhes de adornos brancos que contrastavam com a cor rosada do restante das paredes. Logo abaixo da janela, havia um pequeno jardim com uma única roseira. Apesar de ser inverno, ela ainda estava produzindo belíssimas rosas cor-de-rosa.

Depois de abrir o portãozinho que rangeu a esse movimento, Lívia subiu uma escada estreita com oito degraus, cujo piso era desses mármores antigos na cor branca. Ao final da escada já se adentrava direto em um pequeno alpendre pintado em um tom de rosa mais escuro e com duas majestosas colunas roliças à esquerda, na cor rosa claro e adornos brancos.

A porta de entrada, embora enorme, era simples e possuía apenas alguns detalhes comuns cinzelados na madeira. Ela ficava no centro de dois adornos, ambos iguais na parede. As peças, organizadas de tal forma, criava diferentes formas geométricas: uma moldura de madeira da cor da porta formava o losango externo e o interno, também de madeira da mesma cor, era formado por quatro triângulos, que em junção, formava, ao mesmo tempo, outro losango e um quadrado vazado em cujo centro tinha dois retângulos pequenos de madeira. De fato, eram adornos interessantes e Lívia nunca se cansava de admirar tamanha criatividade.

Lívia sequer imaginava que a história daquela casa tinha uma ligação muito forte com sua família. Ela não sabia, mas muitas vezes ficava tentando entender o porquê de tamanha atração que sentia por ela.

Lívia morava ali há pouco tempo com sua mãe. Logo depois da morte de Miguel, seu pai, ela e a mãe tiveram que procurar um aluguel condizente com a real situação que viviam.  Em um anúncio de uma imobiliária descobriram a casa que estava dentro de seus padrões de orçamento por ser uma casa já bem velha, embora conservada. Mesmo assim tiveram que passar pelo transtorno de encontrar fiadores, o que a chefe de D. Esmeralda não se recusou, pois gostava muito de sua funcionária.

 

 

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 Depois de subir as escadas, atravessar o alpendre e admirar os adornos geométricos na parede, Lívia abriu a porta. Na pequena saleta com móveis simples, ela encontrou sua mãe sentada na poltrona xadrez, lendo, como sempre, algum clássico de Machado de Assis, seu escritor preferido. Ela lia e relia todos os seus romances.

Chegando mais perto para beijar o rosto da mãe, Lívia viu que acertara, pois ela relia o romance “Helena”. Aliás, ela já havia lido esse romance mais vezes do que se podia imaginar. Lívia já sabia praticamente toda a trama de tanto ouvir a mãe narrar alguns trechos. Esse romance era, de fato, um dos mais importantes de Machado de Assis, uma vez que, misturado ao romantismo da trama, já havia nele toques de realismo, pois, o autor já apresentava ao público, em suas páginas, questões sobre adultério, mentira e casamento por conveniência. Ou seja, Machado de Assis já mostrava e, ao mesmo tempo, combatia em suas obras, os costumes hipócritas da sociedade. D. Esmeralda adorava essas tramas. Ela sabia que os romances, ainda que de ficção, eram o retrato da vida real.  “Helena”, por exemplo, contava a história de uma filha bastarda, reconhecida e acolhida pela família de seu pai. Quantas histórias reais como essa não existiam?

Lívia sorriu levemente, protetora e compreensiva para sua mãe, uma bela senhora marcada pela doença. D. Esmeralda, levantando os olhos da leitura, também sorriu para a filha, um sorriso meigo e fraco nos olhos cor de mel emoldurados por profundas olheiras roxas.

 No dia anterior, a mãe de Lívia tivera mais uma seção de quimioterapia adjuvante, um tratamento feito depois que o paciente já passou por uma cirurgia. A mãe de Lívia tinha se submetido a uma cirurgia para retirada de uma mama. Esse tipo de quimioterapia visava eliminar células cancerígenas que por ventura tenham ficado para trás, impedindo que e espalhassem em outras partes do corpo.

D. Esmeralda era uma mulher forte e resignada. Mesmo sofrendo com as reações do tratamento, tentava levar uma vida tranquila e ler para ela era um lenitivo que não a deixava pensar muito.

Naquela tarde, contudo, ela parecia mais abatida e Lívia sempre sentia um nó na garganta ao confrontar aqueles olhos lutadores pela vida. Ela sabia o quanto sua mãe estava sofrendo com a doença e, no entanto, jamais reclamava. Resignava-se a tudo: às terríveis reações do tratamento, as idas e vindas do hospital...

 — Como está mamãe? Demorei muito não é? —E acariciou o rosto magro da mãe. —Hoje está ventando muito. Quase perdi minha boina. — disse rindo e relembrando a cena com o moço de olhos negros. Esse detalhe ela não contou para mãe.

—Não... Não demorou. Nem vi o tempo passar. — A mãe de Lívia fechou o livro e ficou olhando para a filha que seguia para a cozinha.

—Huumm... Machado de Assis é uma ótima companhia não é mamãe? Acho que estou com ciúmes dele. —Lívia parou no limiar da porta e ficou olhando para a mãe com um riso brincalhão no rosto.

—Não fique com ciúme minha filha. Ele é só um passatempo. —D. Esmeralda fingiu se justificar.

— Passatempo? Ha, ha... Não me engane mamãe. Sei que é apaixonada por ele. E não é de hoje.

D. Esmeralda e a filha caíram na gargalhada.

— Bem, vou logo preparar nosso café mamãe— E foi saindo rumo à cozinha, tentando afastar da mente aquele olhar sofrido da mãe e, ao mesmo tempo o olhar do moço que sorria com os cantos dos lábios.

— Não se preocupe minha filha, não tenho muita fome. — D. esmeralda respondeu com uma voz que mais parecia um fio.

Lívia parou no meio do caminho e apontou o dedo para mãe.

 —Nada de “não estou com muita fome” senhora D. Esmeralda. Precisa comer para ficar forte sabe bem disso não sabe?

Lívia voltou meia hora depois com uma bandeja inox forrada com uma toalhinha branca bordada de flores azuis. Lado a lado dois pães de milho recheados com queijo derretido, uma jarra pequena de leite e duas xícaras de café e colocou tudo sobre a mesinha de centro ao lado do pequeno vaso com duas rosas colhidas de manhã. Depois caminhou até sua mãe retirando o livro de suas mãos delicadas e magras. 

— E agora Machado de Assis e a doce Helena precisam te dar um tempo. Nenhuma paixão sobrevive sem se alimentar— disse sorrindo.

D. Esmeralda, resignada, entregou o livro a Lívia como uma menina obediente e recebeu em troca uma xícara de louça branca bordada também com pequenas florzinhas azuis e dentro apenas dois dedos de café ainda fumegante.

D. Esmeralda olhou a xícara quase vazia e depois levantou os olhos para a filha.

—Ordens do médico mamãe— Lívia justificou o racionamento de café e colocou nas mãos de sua mãe o pãozinho de milho.

D. Esmeralda então baixou os olhos e comeu lentamente como se fosse um pesado fardo. 

 

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Depois do lanche, mãe e filha passaram mais uma hora ali na saleta conversando meras coisas. Lívia sempre encontrava algum assunto banal que distraísse sua mãe e assim ela se esquecia, à vezes, do café, de Machado de Assis, da doença e outras tantas coisas.

O vento soprou mais forte e entrou pela janela aberta trazendo um friozinho. Mais uma de suas brincadeiras que, com certeza teriam trazido mais folhas secas que ficariam ali encostadas no muro de pedra.

Apressada, Lívia se levanta e vai ao quarto da mãe, voltando em seguida com o cardigã bege que tricotara há alguns dias e a faz vestir-se.

—Precisa se proteger mais nesses dias frios. Um resfriado a deixaria mais fraca mamãe. E agora, que tal ir descansar um pouco?

 —Já é hora de sua aula? Sua aluna deve estar chegando. Ouvi o barulho no portão.

Olhando pela janela, Lívia viu, além do balançar das árvores da rua, a sua aluna que já abria o portãozinho e subia os degraus da escada. Beijou a mãe e levou-a até o quarto para depois abrir a porta.

 

 

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Assim que recebeu a aluna, Lívia seguiu com ela para uma sala de estudos e trabalhos que havia montado em um dos quartos, com apenas uma mesa e duas cadeiras que encontrara numa loja de móveis usados. Ela mesma fizera a restauração. Em uma das paredes havia também um pequena estante com poucos livros e materiais de pintura. Depois Lívia caminhou até a janela e a abriu. O vento bateu em seu rosto.

— O inverno começou bem frio... — Lívia disse mais para si mesma do que para a aluna. —E como venta...

—O que faremos hoje? —Sua aluna foi logo abrindo uma pasta e retirando de lá, papel, tinta e pinceis.

—Que tal pintarmos ao sabor do vento? — Lívia falou com um sorriso no rosto.

—Ao sabor do vento?— A aluna não estava entendendo.

—Sim... Ao sabor do vento... Como fez o artista plástico pernambucano Daniel Cavalcanti. — E depois de falar um pouco sobre o artista e mostrar em seu laptop algumas de suas pinturas incríveis, Lívia explicou a técnica que ele usava.  

—Daniel Cavalcanti colocava a tela numa superfície molhada, escolhia as tintas e as misturava com água e as deixava ao sabor do vento. A interferência do vento na superfície da tela é que ia criando as formas

—Na verdade quem pintava era o vento... O artista era o vento então. Daniel era apenas coadjuvante— A aluna retrucou sorrindo.

—Na verdade é o contrário. O vento é coadjuvante. O processo da inteligência visual que vem depois é de Daniel. É ele que quem escolhe as partes mais interessantes. Entende?

—Uau... Parece interessante. E bem simples. — A aluna de Lívia parecia extasiada com a ideia.

—Sim. O processo é interessante e bem singelo. Não tem desenho prévio, nem dimensões, e nada de pincéis. E hoje está um dia propício. Venha, vamos preparar tudo e ver no que dá.

Quando terminaram o trabalho, a aluna de Lívia custava acreditar na beleza da trama abstrata que se apresentava na tela. E batendo palmas disse:

—Foi o vento...

 

 

 

CONTINUA...

 


 

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