FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 12

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EM UMA MANHÃ FRIA DAQUELE INVERNO, LÍVIA LEVOU sua mãe ao hospital para mais uma seção de quimioterapia que duraria o dia todo.

Ela fazia uma seção por semana e sofria com as reações desse tipo de tratamento. Reações que iam desde perda de apetite, náuseas e vômitos, infecções, hematomas causados pela diminuição das plaquetas até a fadiga devido à diminuição dos glóbulos vermelhos.

A novidade do tratamento é que os cabelos de D. Esmeralda não caíram, pois, recebia durante a secção de quimioterapia, uma terapia preventiva com touca térmica gelada que diminuía o fluxo sanguíneo no couro cabeludo e o protegia durante o tratamento. 

Essas secções eram um martírio para D. Esmeralda, pois significava que ela ficaria ainda mais debilitada quando saísse do hospital. Contudo, não reclamava. Aceitar tudo era uma forma de tornar as coisas mais fáceis. Inclusive para Lívia que se esforçava tanto para cuidar dela, chegando a renunciar aos estudos e as diversões.

 

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Naquele dia, D. Esmeralda teria então, mais uma sessão de quimioterapia. Mas não estava se sentido muito bem e, por isso não havia se levantado da cama para tomar o café. Lívia preocupou-se e foi ao quarto da mãe.

—Mamãe... O que houve? Não se levantou ainda para o café e temos que ir ao hospital.

—Na verdade não estou me sentindo muito bem. Meu corpo dói e me sinto enjoada. Não quero tomar café.

Lívia tocou o rosto da mãe e a sentiu bem febril.  Foi logo buscar o termômetro e mediu sua temperatura.

—Está com muita febre mamãe. Precisamos nos apressar para ir ao hospital.

 Na verdade, sua mãe já tinha se sentido assim outras vezes. O médico havia explicado que o aumento da temperatura é uma consequência das reações do sistema imunológico provocado por alguma infecção.

Lívia ajudou sua mãe a se vestir e a colocar um agasalho mais quente, pois havia esfriado muito. Depois chamou um táxi para levá-las ao hospital.

Assim que chegaram, D. Esmeralda passou primeiro por uma triagem que detectou de fato, uma febre muito alta. O que significava que poderia estar realmente com uma infecção. Ela foi internada e se submeteu a vários exames.

—Sua mãe está com um quadro de infecção muito alto. — Dr. Raul, o médico oncologista que sempre atendia D. Esmeralda comunicou a Lívia assim que entrou no quarto segurando sua maleta e um envelope com os exames. — Como já expliquei outras vezes, isso é comum em pacientes quimioterápicos, pois a quimioterapia, além de matar as células cancerígenas, mata também as células boas e o corpo acaba ficando vulnerável às infecções.

—Mamãe vai ficar bem?—Lívia parecia angustiada.

—Sim... É o que espero. Mas terá que ficar internada, pois está muito debilitada e precisará tomar soro e vitaminas para se fortalecer. Além disso, tem os antibióticos fortes. — E batendo nos ombros de Lívia como sempre fazia se aproximou de D. Esmeralda que dormia. — Sua mãe é uma guerreira.

— E quanto à seção de quimioterapia que ela faria hoje? — Lívia não deixou de perguntar.

—Será adiada até que esse quadro atual se reverta. — O médico explicou.

Logo uma enfermeira entrou, verificou o soro, mediu novamente a febre de D. Esmeralda e introduziu alguns remédios no soro. Em seguida saiu acompanhada por Dr. Raul.

Assim como estava sendo difícil para D. Esmeralda, estava sendo difícil também para Lívia, cujo sofrimento maior, era ver a mãe passar por todos aqueles transtornos. E não tinha outra saída senão passar por todos eles.

Lívia tinha esperanças que as reações que a mãe sentia acabassem com o fim do tratamento. No entanto, tinha muito receio também, pois conhecia casos em que o paciente não resistira.  E sua mãe parecia cada dia mais debilitada com os sintomas. As suas células de defesa já não estavam conseguindo agir como deveriam. Além disso, o tratamento mal havia começado. O que significava que ainda havia um longo caminho de lutas pela frente. Sua mãe iria conseguir vencer essa guerra? Por mais determinação que ela tivesse, muitas coisas fugiam ao controle em um campo de batalha. Ainda mais quando o inimigo é um câncer. Ele ataca sempre à surdina. E às vezes quando os sintomas aparecem pode ser tarde demais. Combatê-lo é o maior desafio, seja do doente ou da Medicina, em pleno século XXI.  Então que inimigo pior pode haver para um ser humano?

 Lívia se lembrava bem do dia em que a mãe lhe dera a notícia. Ela, na verdade tinha feito o exame de mamografia através de uma campanha do Outubro Rosa no Posto de Saúde de seu bairro. Nunca havia se preocupado com isso. Alguns dias depois uma agente de saúde a procurou dizendo que precisava comparecer para uma consulta o mais rápido possível. Ela não dissera nada para Lívia e fora sozinha à consulta, pois era de manhã e a filha estava para a Faculdade.

A mãe ainda fora trabalhar à tarde mesmo depois dessa trágica notícia. Só à noite, sentada na poltrona com um livro de Machado de Assis nas mãos, foi que D. Esmeralda se virou para filha que rabiscava qualquer coisa em um caderno e disse:

—Meu exame de Mamografia deu positivo para câncer.

Lívia levantou a cabeça e fitou a mãe.

—O que disse mamãe?— Parecia não acreditar no que ouvia. E de repente era como se um terremoto tivesse abalado aquela sala e o chão fugido sob seus pés. A palavra câncer, para ela, soava sempre muito trágica.

—Tenho câncer. —D. Esmeralda repetiu como se aquilo fosse algo banal. Mas na verdade, ela estava apenas tentando ser forte.

Uma lágrima rolou dos olhos de Lívia e D. Esmeralda se levantou para abraçar a filha.

—Não se preocupe Lívia. Vai ficar tudo bem.

Mas não ficou tudo bem. E ao que tudo indicava não ficaria tudo bem. Mais do que nunca Lívia pensava no câncer como uma sentença de morte. Contudo, não demonstrava suas preocupações para a mãe, embora houvesse momentos em que se sentia fraquejar. 

 

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Aqueles três dias no hospital, levavam Lívia a relembrar a mãe em plena atividade, costurando belíssimos vestidos de madrinhas de casamento, de noivas, de debutantes... Vestidos de renda, de sedas, esvoaçantes... Ela era uma artista. Não era justo estar sofrendo tanto. Mas aprendera com a própria mãe a não reclamar de nada e viver cada coisa de cada vez, mesmo os momentos difíceis.

Às vezes ela caminhava pelo corredor do hospital enquanto a mãe dormia. Ali o frio parecia mais intenso que lá fora, mas não mais que o da sua alma. Então ela ia se sentar no banco de um pequeno jardim entre duas alas do hospital na esperança de que pelo menos o frio da alma se abrandasse. O vento vinha e ficava brincando com seus cabelos como se a consolasse. E Lívia até fechava os olhos para sentir tamanha era a calma que ele trazia.

A luta silenciosa pela vida ali naquele hospital assustava Lívia. Ela percebia que era uma luta intensa. E não só com relação aos tratamentos agressivos, mas uma luta no interior de cada um para aceitar a realidade. Para vencer essa realidade. Bastava olhar para cada rosto. Havia pessoas resignadas, pessoas com olhares tristes, outras que, apesar de tudo sorriam.

Cada ser humano tinha um jeito de encarar a vida, os problemas, os sofrimentos. Mas uma coisa Lívia sabia: o câncer é algo indefinido, sua cura é indefinida. E isso a aterrorizava porque trazia a possibilidade de perda de sua mãe. Para não pensar nessa possibilidade, Lívia buscava a imagem de Arthur e recordava todas as tardes que caminharam juntos até a padaria. A padaria era a desculpa de todas as tardes para estarem juntos. Ao pensar nisso Lívia conseguiu esboçar um sorriso.

Ela também se lembrava do beijo suave da última vez, as reverências que ele lhe fazia com jeito sério, mas, ao mesmo tempo com um sorriso no canto dos lábios.  Eram doces momentos em que ela esquecia todos os problemas e tristezas e se agarrava a cada momento daqueles como fossem únicos. Arthur era doce, atencioso. Ele era especial. E era a sua fortaleza naqueles dias de vendavais. O que ele estaria pensando de sua ausência?  Com certeza teria ido encontrá-la. Ou não teria? Ela o veria de novo depois daquele beijo?

 

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A mãe de Lívia finalmente obteve alta e foi para casa. Ela ficava a maior parte do tempo deitada e até esquecera os romances de Machado de Assis. Sinal de que não estava bem. Mas Lívia tinha esperança que tudo fosse provisório. Contudo, sabia também que ainda havia muita luta, pois ainda tinha muitas secções de quimioterapia pela frente. Mas, não queria se deixar abater ou sofrer por antecipação. Para ela, os problemas de cada dia, certamente viriam com suas próprias alternativas de soluções.

Assim que acomodou sua mãe no quarto, certificando-se que estava confortável, ela foi até o pequeno jardim de frente e percebeu que as rosas estavam mais lindas naquela manhã. Colheu duas como sempre e fez um pequeno buquê como a mãe gostava e colocou no vaso da mesinha de centro da saleta, jogando fora as rosas murchas. Depois ajeitou as almofadas no lugar, andou pela sala como se vistoriasse algo que não sabia direito o quê e sentou-se na poltrona pegando o livro que sua mãe deixara ali. Ela ainda não tinha terminado de ler o romance “Helena” de Machado de Assis. Lívia o abriu onde estava o marcador e correndo os olhos pela página deteve-se no trecho: 

 

“A princípio foi esse olhar um simples encontro; mas dentro de alguns instantes era alguma cousa mais. Era a primeira revelação tácita, mas consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum deles procurara esse contacto de suas almas, mas nenhum fugiu. O que eles disseram um ao outro, com os simples olhos, não se escreve no papel, não se pode repetir ao ouvido; confissão misteriosa e secreta, feita de um a outro coração, que só ao céu cabia ouvir, porque não eram vozes da terra, nem para a terra as diziam eles.” (Machado, Assis, Helena).

 

Lívia estremeceu, pois ao ler essas palavras escritas em 1876 por Machado de Assis, ela se viu ali nas entrelinhas. Ela e Arthur. Desde o início ela sabia que era alguma coisa mais que os unia. Alguma coisa mais que não precisava de palavras.

Um pouco perturbada fechou o livro e se levantou caminhando até a porta de frente. Abriu-a no mesmo instante em que Arthur ia bater.

Ela não parecia surpresa. Nem ele. Prova de que havia aquela coisa a mais entre eles que as palavras não precisavam dizer. Machado se Assis estava certo.

 

 


 

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